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OCD 9 - Arraes
foi avisado sobre a Operação Condor
A Ayrton Maciel e Ciro Carlos
Rocha.
João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda
foram vítimas da Operação Condor, o plano das ditaduras militares dos países do
Cone Sul para eliminar líderes políticos na região. Assassinatos,
desaparecimentos e atentados ocorreram, simultaneamente, em fins dos anos 60 e
nos anos 70, na América Latina e até nos Estados Unidos e Europa. Quem afirma é
o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, 84 anos. Ex-exilado político na
Argélia (África), Arraes diz que o plano Condor decorreu do impasse na Guerra
do Vietnã, que fez os Estados Unidos temerem novos confrontos. Mas a decisão da
operação foi da extrema-direita do Cone Sul. “A condição para a abertura era o
desaparecimento de lideranças políticas”, argumenta, em entrevista a
Ayrton Maciel e Ciro Carlos Rocha. Arraes revela memórias do exílio e do
retorno ao Brasil. Ano passado, o JC fez as primeiras revelações.
JANGO, JK E LACERDA
“Qual a razão para a eliminação
deles? Era a abertura política. Havia um começo de discussão sobre a abertura.
Na medida em que os acontecimentos no Vietnã demonstravam um impasse cada vez
maior, portanto a necessidade de negociação daquela guerra, começou-se a sentir
a importância de se abrir na América Latina. A abertura seria uma conseqüência
do impasse que a Guerra do Vietnã trazia para o mundo. A negociação lá
implicava numa mudança de métodos, o que já se apontava em certos movimentos
dos americanos. Um dos documentos americanos que revelam isso é o Relatório Rockfeller sobre a América Latina. Esse
relatório declara que os militares não se constituíam numa classe social, e sim
numa categoria. Como tal, eles eram instáveis ideologicamente. Sendo
ideologicamente instáveis, as posições deles não se sustentavam em interesses
concretos. Eles não eram merecedores de confiança. Setores importantes dos
Estados Unidos achavam que a militarização não era uma solução para os
problemas desses países todos, que eram diferentes entre si.”
A RAZÃO
“O assassinato político é um
negócio que existe. Quando eu cheguei na Argélia, tinha sido assassinado o
general português Humberto Delgado, na fronteira. E cito Olof Palmer,
primeiro-ministro de um país como a Suécia, chefe do Partido Socialista, que
tinha uma posição independente e era crítico da Guerra do Vietnã. Ele foi
assassinado na saída do cinema, ninguém sabe porque quem.”
O PLANO
“Os americanos queriam a
implantação de um certo grau de liberdade dentro desses países, porque não dá
para conduzir o mundo apenas debaixo das botas dos soldados. Algum político,
alguma coisa interna teria de dar condições de negociação, mesmo que fossem
precárias, mas aliviaria o fardo de uma repressão e de uma categoria como os
militares, que haviam passado a mandar isoladamente. Eles decidiriam com o
povo, e ficaria por isso. O perigo que havia, então, eram as pessoas com
ascendência sobre o povo. Aberto o Brasil, apareceriam Juscelino, Jango e
Carlos Lacerda. Todos reunidos em torno de Juscelino. Quem seguraria? Todo
mundo iria para Juscelino. A esquerda, o centro, a opinião pública. Ele foi um
presidente importante. Não dava para soltar Juscelino sem o regime ter problemas,
ainda mais ajudado por Jango e Lacerda.”
MEDIDA PREVENTIVA
“Uma espécie de condição para a abertura
política era eliminá-los. Foi uma medida preventiva contra os fatos. Nós
iríamos para a abertura, e para se ter uma abertura sem muito perigo essas
pessoas teriam de desaparecer. Porque, se abrem, quem era que segurava? A mesma
coisa aconteceu nos outros países. Um homem como Carlos Prats (comandante do
Exército do Chile), ministro de Salvador Allende, general com peso em parte do
Exército, reconhecido pela opinião pública, não era qualquer um. Era uma
prevenção diante de uma abertura que precisava ser controlada. Era o que se
passava na cabeça da extrema-direita do Cone Sul. O desaparecimento dessas
pessoas foi uma condição para a abertura.”
AMERICANOS
“Não sei se eles idealizaram.
Entre os americanos também existem suas diferenças. Alguns americanos queriam
botar pra quebrar, outros não. Não era uma coisa uniforme, a ponto de todos
quererem militarizar. Se perguntassem ao povo americano, ele não queria isso. É
um povo que reage a certos acontecimentos de uma maneira positiva. O povo
americano não pode ser confundido com aquela situação. Eles não têm acesso a
essa decisão, e dentro da estrutura americana mesmo existem diferenças e
pessoas que não seguiram por aquele caminho.”
O CORONEL
“Fui procurado por um coronel
argelino, assessor do presidente da Argélia. Eu o conhecia, era uma pessoal com
quem eu tinha ligação. Ele comandava o departamento que lidava com as questões
internacionais, e que não tinha nada a ver com o Ministério do Exterior.
Cuidava da parte de estudos estratégicos, pesquisas, a parte da inteligência do
Governo. Ele foi lá em casa e me falou que três pessoas iriam me procurar com
informações que eram do meu interesse e da segurança de muita gente. Ele me
disse: ‘Não saia de casa’. Eles chegaram, alguns dias depois, olharam a casa e
pediram para que a conversa fosse do lado de fora.”
O CONDOR
“Era uma decisão da direita do
Cone Sul. Foi o que revelaram essas pessoas na Argélia. Disseram que estavam
transmitindo uma informação saída de uma reunião da extrema-direita do Cone
Sul. Eles não se identificaram, nem podiam. Tinham uma função muito particular.
Falavam em francês. Um me pareceu argelino, por causa da forma de falar. Eles
disseram que todas as pessoas que tivessem relações de peso em seus países
deveriam se acautelar. Não foram de muita conversa, não. O essencial foi isso.
Disseram que a extrema-direita do Cone Sul tinha decidido eliminar políticos e
dirigentes com representatividade em seus países. Procurei, então, gente na
Europa, gente de confiança. Avisei e pedi que retransmitissem o alerta, e
mandei um aviso a Leonel Brizola, que estava no Uruguai. O aviso chegou a ele.
Ele pode confirmar isso.”
A OPERAÇÃO
“O alerta chegou 20 a 30 dias
antes dos assassinatos dos uruguaios Gutierrez e Michelline, o primeiro
deputado e o segundo senador, que se encontravam na Argentina. Eram importantes
lideranças. Em seguida, começou a onda de assassinatos no Chile, na Bolívia, no
Uruguai, na Argentina, no Brasil, e o resto. É só ver a seqüência das datas. Os
uruguaios foram estourados na Argentina a bomba. Chilenos foram mortos também
na Argentina. O general Torres, na Bolívia. Um bocado de gente morreu. Um
ex-ministro de Salvador Allende (o chanceler Orlando Letelier) foi assassinado
nos Estados Unidos (o carro explodiu ao abrir a porta, em Washington), e um
outro sofreu um atentado na Itália, mas não morreu, ficou paralítico. E aí vêm
Juscelino, Jango e Lacerda, em seqüência. Juscelino em um desastre, Jango de
repente (oficialmente, enfarto) e Lacerda foi ao hospital. As pessoas dizem que
ele saiu bem de lá e depois morreu.”
POR QUE LACERDA?
“Lacerda era um líder de direita,
mas estava unido a Juscelino e a Jango, na Frente Ampla pela abertura. Ele
tinha sido escorraçado pelo Golpe de 1964.”
A SELEÇÃO
“A Operação Condor, no Brasil,
foi um processo muito seletivo, diferente do que ocorreu no Chile e na
Argentina. Aqui, além das lideranças populares, a abertura dependia da
eliminação das lideranças do Partidão (PCB) que tinham uma posição de
enfrentamento ao regime, como foi o caso do Davi Capistrano (ex-combatente da
Guerra da Espanha), que desapareceu. O próprio Carlos Marighella (PCdoB,
ex-Partidão), morto em 1968, pode ser incluído nessa estratégia. Os do Partidão
que não tinham posição de enfrentamento sobreviveram. O desaparecimento
seletivo da direção do Partidão também foi uma condição para a abertura
política.”
A PRISÃO
“Logo após a minha deposição, fui
levado para o quartel de Socorro. No dia seguinte, fui para Fernando de
Noronha. Não passei pelo Dops. Em Noronha, fiquei oito meses. O coronel
Ibiapina (Exército) tomou meu depoimento durante 12 horas, da meia-noite ao
meio-dia. Não houve violência física. A pressão era assim: tomar um depoimento
à meia-noite. De Noronha, voltei ao Recife para a Companhia de Guardas do
Exército. De lá, fui para o Corpo de Bombeiros. Depois, levaram-me para Maceió
de carro, durante a madrugada. Chegamos às 8h30. Passei o dia trancado em uma
dependência do Exército. Na outra madrugada, colocaram-me em um avião para o
Rio de Janeiro. Fiquei na Fortaleza de Santa Cruz. De lá, fui libertado por
habeas-corpus. Aí fui novamente preso e levado para depor à noite. Dias depois,
nova prisão, e fui levado para uma quartel na Tijuca. Entre o habeas-corpus e
essa terceira prisão fiquei na casa de um tio meu. Aí, o advogado Sobral Pinto
já achava que não deveríamos esperar por mais nada.”
O ASILO
“O Chile não me concedeu asilo
político por pressão do Governo brasileiro. A França também. De Gaulle (Charles
De Gaulle) era o presidente, mas isso não era uma questão dele. Os outros
países que me ofereciam asilo eram a Iugoslávia, o Senegal (África), mas lá não
havia nem Embaixada brasileira, e a Argélia. Escolhi a Argélia por causa da
guerra de libertação (era colônia da França), da luta do povo argelino pela
liberdade. Na Constituição argelina existe um artigo que diz que a Argélia
‘abrigará todo aquele que lute pela liberdade’. Está na Constituição: ‘a
Argélia abrigará os perseguidos por razões políticas’. Mas as embaixadas
estavam todas cercadas, inclusive o consulado argelino no Rio. Consegui entrar
porque o embaixador da Argélia tinha comprado uma casa no bairro de Santa
Teresa, para residência. Não estava ainda montada, mas fui para lá. O
embaixador colocou uma placa na porta e hasteou a bandeira.”
A CARTA
“A França proibiu a minha entrada
lá, através de uma portaria de expulsão de 19 de julho de 1965, que somente foi
revogada em 26 de maio de 1975. Tenho a carta
do ministro do Interior, R. Marcellin, ao deputado comunista francês
LucienNeuwirth, em 1973, explicando o porquê da proibição. Era coisa de gente
da direita. O ministro escreveu a carta revelando que não podia rever a
proibição de minha entrada na França. Havia uma pressão do Governo brasileiro
nesse sentido, só que havia gente de De Gaulle que não possuía essa mesma
posição. Participava do ministério, mas não aceitava esse tipo de pressão. Isso
não era um assunto para o presidente, era uma questão de Governo. A proibição
acabou revogada.”
RESTRIÇÕES
“Havia uma vigilância dos países
sobre os exilados. Várias vezes fui abordado pela polícia nos aeroportos. Na
Inglaterra, havia resistências, inclusive o embaixador argelino intercedeu para
que eu participasse, certa vez, de um congresso em Londres. Os problemas na
Itália não eram criados pelo Governo italiano, mas por setores da polícia
italiana contra os exilados. Eram delegados encarregados da imigração. Havia a
relação de Sérgio Fleury com delegados de lá. Em Portugal, tinha a ditadura de
Salazar e na Espanha a de Franco. Lá, eu não entraria.”
DOCUMENTO
“No exílio, recebi um documento,
saído de dentro do Governo militar, com uma série de medidas que seriam
aplicadas, internamente, para reprimir a resistência. O primeiro item era
liquidar o movimento estudantil. Era um documento sigiloso, não posso dizer
quem me mandou. Foi preparado quando da transferência de Governo Castelo Branco
para Costa e Silva. Chama-se ‘Diretrizes de Governo’ e delineava a política a
ser seguida.”
OS TERMOS
“Esse documento contém
enunciados. São vários pontos. Ele enumera uma série de coisas, a começar pelo
movimento estudantil, que, naquele tempo, era muito ativo. Os militares achavam
que era fundamental liquidar com ele. Depois disso, vieram várias medidas,
inclusive o decreto 477/68 (expulsão dos estudantes das universidades por
prática política). E criou-se o sistema de cadeiras nas universidades, que
segmenta a formação do estudante. O sistema de cadeiras evitava que os
estudantes começassem e terminassem juntos o curso. Iam se separando, pagando
cadeiras em uma turma e outra.”
OS DOMINÓS
“A partir do golpe militar no
Brasil (31 de março de 1964), o que houve foi uma militarização no mundo. Uma
seqüência enorme de golpes. Em 65, o golpe na Indonésia (Ásia), que liquidou
muita gente, e depois sucederam-se golpes na América Latina e na África. Era um
processo de luta dentro do quadro geral da Guerra Fria. Se o Brasil se tornasse
um País com outra posição, o negócio complicava, porque é um País muito grande.
E o golpe no Brasil foi antes, coincidiu com as providências para a intervenção
americana no Vietnã. Os americanos temiam enfrentar duas frentes, e eles iam
entrar de forma dura na Ásia, como de fato entraram.”
A VOLTA
“Jarbas Vasconcelos não teve nada a ver com minha
volta. Eu vim em função da Lei de Anistia. Ele se encontrou comigo lá (na
Argélia). Ele queria ser secretário do então MDB, depois desistiu. Eu estava
fora, não estava a par das coisas. Eu tinha notícia que havia contestação aqui,
mas era praticamente impossível conseguir informações. O jornal O Estado de
São Paulo chegava uma vez ou outra. Eu não mantinha contato com familiares
aqui, nem correspondência. Ligar pra’qui, aí você teria que explicar porque
tinha falado comigo. Na volta, tive alguns problemas. No Rio de Janeiro, fui
seguido pela polícia. Em São Paulo, fui interpelado dentro de um restaurante
pela Polícia Federal. Eu estava com Teotônio Vilela, que era senador.”
Revista
de História da Biblioteca Nacional- No 16 – Janeiro 2007
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