MD-34 - A
ditadura não começou em 1968
Por Luiz Weis em
24/05/2011
Boa sacada, a do
Globo, de marcar os 40 anos do AI-5 com uma série de matérias sobre “o traje
civil da ditadura militar”. Como diz a chamada da primeira delas, do repórter
Chico Otavio, “a ditadura não estava sozinha quando iniciou os anos de chumbo
no Brasil. Seja com apoio aberto ou indiferença, a sociedade civil fez sua
parte”.
Fez a sua parte,
antes de mais nada, para a consumação do golpe de 1964, de que o AI-5 foi o
paroxismo – mas não uma excrescência, ou um desvio aberrante da lógica do
regime.
O Estado de
S.Paulo, a propósito, deu ao caderno especial sobre a infâmia de 13 de dezembro
de 1968 o título “A liberdade assassinada”. Na realidade, o trucidamento
começou no 1º de abril de quatro anos antes, com a derrubada do presidente João
Goulart. Presidente “constitucional”, assinala em boa hora o texto de abertura
de Carlos Marchi, no jornal que nunca se arrependeu de sua participação no
golpe a que chamaria de “revolução”.
A rememoração desta
semana, portanto, requer não só que se respeite o calendário da história, mas
também, quando se destaca a pressurosa colaboração civil para a plenitude da
ditadura, como faz o Globo, que não se omita a inestimável contribuição da
mídia para o seu advento.
Se a recusa do
Estado a se autocensurar, e a encobrir a censura que lhe foi imposta na
sequência do Ato 5, foi o melhor momento de sua história, o pior momento da
história da imprensa brasileira foi a sua cumplicidade ativa, em nome da
democracia, na construção do seu oposto.
À época, é bem
verdade, forças sociais antagônicas entre si compartilhavam no Brasil do
pouco-caso pela democracia como valor universal.
Para a direita com
que a imprensa se alinhara, a supressão das liberdades democráticas era um
preço até módico a se pagar contra os projetos progressistas – as “reformas de
base” – do governo Goulart. Para ampla parcela da esquerda, a democracia dita
burguesa era uma barreira ao progresso social. “Liberdade sem comida/ é
mentira/ não é verdade”, ensinava, antes do golpe, uma canção [“Zé da Silva é
um homem livre”, música de Geni Marcondes e letra de Augusto Boal, gravada no
disco “O povo canta”, de 1964].
Mas os ares dos
tempos idos não podem servir para justificar o injustificável. Também houve
época em que o trabalho escravo era aceito por muitos como parte da ordem
natural das coisas. Nem por isso é menos abominável. Golpes de Estado, também.
A chamada grande
imprensa, com uma única exceção, aceitou as violências do novo regime, os seus
“excessos”, conforme o abjeto eufemismo em voga. Os jornais não se indignaram
com a mais brutal manifestação a céu aberto do golpe recém-vitorioso: o desfile
pelas ruas do Recife do sexagenário comunista Gregório Bezerra, amarrado a um
veículo militar.
Estamos falando, repita-se, de 1964 – não de 1968.
A exceção foi o
Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Golpista, tinha publicado na primeira
página os editoriais “Chega”, “Basta”, “Fora”, clamando pela cabeça de Goulart.
Mas, já na edição de 3 de abril de 1964, o editorial era “Terrorismo, não”,
denunciando a truculência da polícia do governador carioca e arquigolpista
Carlos Lacerda.
O Correio, em que
escreviam jornalistas da estatura de Antonio Callado, Carlos Heitor Cony,
Hermano Alves, Márcio Moreira Alves, Otto Maria Carpeaux e Paulo Francis, se
transfigurou em porta-voz da oposição. Asfixiado pelo governo, morreu de
inanição em junho de 1974.
Do que se publicou
nestes dias sobre o AI-5, mantenha-se diante dos olhos, para que se conte a
história como a história foi, o irrepreensível comentário do professor Daniel
Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense, no Globo de domingo (7/12):
”A dimensão militar
da ditadura está bem estudada. Mas ainda falta, e muito, estudar e refletir
sobre a dimensão civil da ditadura. Pois a ditadura brasileira, sem nenhuma
dúvida, em todos os seus momentos, foi uma ditadura militar e civil. Sem os
civis, ela não teria começado, nem durado, como durou. Em uma palavra: sem os
civis ela simplesmente não teria existido.”
Sem a imprensa, tampouco.
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