A Mídia na Ditadura Militar - Imprensa x Censura: a luta armada das palavras







MD-48 - Imprensa x Censura: a luta armada das palavras Entrevista com o professor  João Batista de Abreu


Durante dez anos, o professor João Batista de Abreu esquadrinhou os jornais que estiveram sob censura no regime militar, revelando uma outra guerra que se desenrolava nas redações dos diários daquele período. No combate paralelo travado entre jornais e censores, as armas eram as palavras: eufemismos utilizados ora para “amenizar”, ora para driblar/contornar as ações do “regime de exceção” que ditava o que deveria ou não ser publicado. Esse árduo cotidiano, também vivido por João Batista de Abreu, é examinado em detalhes no livro As manobras da informação: análise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil – 1965-1979 (co-edição EdUFF/Mauad), que chega à segunda edição. Em entrevista à EdUFF, o autor – Doutor em Comunicação pela UFRJ e vice-diretor do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF – fala sobre a obra e o desafio dos jornalistas em tempos de ditadura.
Como se dava a censura nos jornais durante o regime militar brasileiro?

É importante ressaltar que uma matéria publicada é sempre fruto de um trabalho coletivo. Há o trabalho do repórter e eventualmente o do copydesk, mas sempre existe a atuação do editor. No período da luta armada, a presença do copydesk era vital, porque era uma época de fechamento político, em que as palavras ganhavam um peso enorme. Havia um “glossário” de palavras que existia somente no imaginário. Elas estavam fora do universo jornalístico. Isso acontecia por conta da censura oficial e de uma auto-censura, porque já se sabia que estas palavras revelariam a posição política do veículo. A palavra “tortura”, por exemplo, não podia ser usada. No caso dos jornais sob censura prévia, como O Estado de S. Paulo, Tribuna da Imprensa, Jornal da Tarde, O Pasquim, Opinião, Movimento e EX, isso ficava claro através da ação do censor, que cortava certas palavras. Mas mesmo no caso daqueles jornais que não estavam sob censura prévia – caso de O Globo e Folha de S. Paulo – seus editores não utilizavam determinados termos, porque sabiam que isso seria um ato de ousadia.

Além do emprego de eufemismos, havia outras formas de manipulação do conteúdo dos jornais?
Havia as distorções. Em 1964, o jornal que usasse a palavra “revolução” estava indicando, na verdade, sua posição favorável ao regime militar. A idéia de revolução é sempre boa, positiva, pois denota movimento e mudança para melhor. A História é marcada por revoluções e nós temos a tendência a acreditar que elas têm como resultado uma mudança para melhor. Isso está no imaginário das pessoas. Um dos usos do discurso é a formação de mentalidade. Durante a luta armada, havia duas guerras paralelas: uma era militar – com as forças armadas e os órgãos de segurança de um lado e os grupos clandestinos de outro – e a outra uma guerra de sentido, levada a cabo pelos jornais. Era uma guerra para conquistar a população civil. Nesse confronto, as vítimas eram os leitores desinformados, compelidos a acreditarem em determinadas coisas que o jornal “recorta”. Quando a finalidade política é descaracterizada e o enfoque passa a ser o caráter policial da ação, o resultado é que a ação é criminalizada através da edição. Se eu tenho uma matéria de um crime passional, jogo ao lado de uma matéria sobre um roubo de carro e publico juntamente com uma terceira reportagem sobre a invasão de um apartamento onde foram apreendidos livros da doutrina comunista e presas pessoas que eram procuradas, eu estou colocando essas três ações em um mesmo universo de sentido.

Isso ainda acontece?
Sim e principalmente com o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra). O MST é uma instituição que é criminalizada o tempo todo pela imprensa. As ações desse movimento são vistas como um desvio e, desta forma, se retira o caráter político de sua atuação. Isso também acontece com outras instituições, mas o MST é o mais visado, porque é aquele que mais ameaça. E, a meu ver, é o que toca em questões cruciais da estrutura da desigualdade social – a questão da terra –, que nunca foi resolvida no Brasil.

Sua atuação é voltada principalmente para o radiojornalismo. Por que a decisão de utilizar o jornalismo impresso em sua pesquisa?

O rádio e a TV são veículos mais difíceis de se analisar porque a atuação da censura no período em questão era mais draconiana, mais incisiva. De acordo com a Constituição vigente na época (e até hoje), rádio e TV são freqüências que pertencem à União, a quem cabe dar a concessão ou não. Assim, se um desses veículos apresentasse uma cobertura contrária ao regime, a qualquer momento essa concessão poderia ser suspensa. No caso dos proprietários de jornais e revistas, o governo não tem o direito de chegar e dizer “você não é mais dono”. Ele [o governo] podia pressionar os anunciantes, fazer fiscalizações freqüentes para ver se os empregados estavam contratados corretamente, se os impostos estavam sendo pagos. Essa era uma outra forma de pressão – que foi feita, e muito. Outro motivo pelo qual escolhi a mídia impressa é que para se analisar a cobertura de rádio e de televisão seria preciso analisar fitas de áudio e de vídeo. O cassete aparece somente em meados dos anos 1960 e, naquela época, os programas não eram gravados com a tecnologia que existe atualmente. Já o jornal é um material impresso, o que facilita a análise. Além disso, na época, os jornais tinham uma importância e um papel de formação da opinião pública muito maiores do que têm hoje.

Essa imprensa era dividida, simplesmente, entre os veículos de oposição e os de apoio ao regime?

É importante ressaltar o comportamento dinâmico dos jornais. Veículos que durante um período pequeno tiveram um papel de contestação – caso do Jornal do Brasil –, mais tarde adotaram uma posição de apoio ao regime militar. Em outras palavras, utilizaram um “discurso do silêncio”, que pode ser definido como o fato jornalisticamente relevante que não foi noticiado. Se uma explosão não é publicada por um determinado jornal, para o universo de leitores daquele veículo, ela simplesmente não aconteceu.

Quais os mecanismos usados para driblar essa censura?
O Estado de S. Paulo decidiu publicar poemas de Camões; o Jornal da Tarde, receitas; e a maior parte dos jornais “alternativos” utilizavam tarjas pretas com as frases “Leia e assine Opinião”, “Leia a Tribuna da Imprensa”. Essas atitudes informavam ao leitor que havia trechos proibidos. Pouca gente sabe, mas a revista Veja esteve sob censura e o diretor de redação, Mino Carta, colocava desenhos de “diabinhos” em cima dos trechos censurados. Esses eram indicadores, para os leitores, de que havia alguma coisa diferente. E a repetição dessas atitudes fez com que o público entendesse isso.

Como era ser integrante da equipe da Rádio JB durante a ditadura?

Era um desafio e ao mesmo tempo algo extremamente gratificante, porque a gente conseguia, em alguns momentos, ousar, transgredir o que a censura tentava impor. Era um verdadeiro trabalho de “guerrilha jornalística”. É importante ressaltar que tanto o JB quanto a Rádio JB nunca fizeram auto-censura na reportagem. Por exemplo, uma bomba explode em determinado lugar e nesse local são encontrados panfletos de uma organização anarquista. Devido à ditadura, já se sabia que esse fato não iria sair e o chefe de reportagem não mandava cobrir. Neste aspecto, a equipe da Rádio JB foi agraciada com a liderança de profissionais como Clóvis Paiva, Antônio Chrisóstomo e Ana Maria Machado, que não se deixavam intimidar e mandavam cobrir tudo o que acontecia. Era como se houvesse uma “resistência branca”. Apesar da censura, a gente sempre buscava uma forma de tentar cobrir e de botar no ar. Uma manifestação em favor da anistia, por exemplo, seria proibida pela polícia. Com isso, haveria caminhão da PM na rua, muita gente, engarrafamento. E aí, o que a gente fazia? Noticiava o engarrafamento. Em alguns outros poucos veículos, como na Jovem Pan, em São Paulo, e na Continental, em Porto Alegre, isso também acontecia.

A imprensa poderia ter optado por não encampar os termos “sugeridos” pelo regime militar? Como?
Sim. Tendo mais cuidado com a linguagem utilizada. Naquele período, a grande imprensa ou apoiava claramente o regime e se beneficiava disso – caso de O Globo e a Folha de São Paulo – ou era conivente, em boa parte do tempo, como o Jornal do Brasil. Tradicionalmente, no Brasil, a imprensa é conservadora e representa os interesses da elite. O golpe beneficiou basicamente uma elite, que tinha ligações com interesses norte-americanos. Na história do Brasil, talvez no período de Getúlio Vargas / Juscelino Kubitschek tenha existido um certo grau de pluralidade ideológica expressa nos meios de comunicação. A Última Hora e o Correio da Manhã eram exemplos disso. Com o golpe militar, os jornais que representavam esses segmentos mais progressistas fecharam, foram vendidos ou perderam expressão. Então restaram os jornais conservadores. Mas até mesmo estes, como o Estado de S. Paulo e o Jornal do Brasil tiveram, em um determinado momento, uma reação contrária ao fechamento do regime. É como aquela frase do Tancredo Neves: “A política é como uma nuvem: cada hora que você olha está de uma forma diferente”. Com os jornais acontece o mesmo. Não se pode afirmar que de 1964 até 1984 o jornal “A” teve o mesmo comportamento que o jornal “B”. O que eu vejo de diferente hoje é que os jornais estão cada vez mais se tornando empresas, com um certo grau de autonomia.

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