MD-28 - Ilustres militantes
O Pasquim versus Nelson Rodrigues
Nos extremos ideológicos da
ditadura, Nelson Rodrigues e O Pasquim trocaram farpas afiadas, mas acabaram
aderindo à mesma causa: a defesa da anistia.
Elio Chaves Flores
Lançado em junho de 1969, no olho do furacão das tensões que varriam o
Brasil e o mundo, o tablóide humorístico O Pasquim não poderia ter outro alvo
preferencial para suas críticas que não os “brucutus” do governo militar.
Bater na ditadura – embora com o evidente cuidado de driblar os censores – era quase uma obrigação. E não havia do outro lado resposta à altura das ironias inteligentes de jornalistas e chargistas como Sérgio Cabral, Jaguar, Tarso de Castro, Ziraldo e Millôr Fernandes. Foi no front intelectual que eles encontraram um opositor com gabarito para enfrentá-los: o consagrado dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980). Por seu temperamento genioso, irônico e anticomunista, o genial autor de “Vestido de Noiva” encarnava o representante máximo da execrável direita inteligente. Escolhido como símbolo reacionário, rapidamente entraria na mira do jornal alternativo. E não o deixaria sem resposta.
Na verdade, não é possível saber
que lado começou a contenda. Desde o golpe militar de 1964, a tensão entre
perseguidores e perseguidos estava presente não somente nos partidos políticos
e sindicatos, mas também nos nichos da intelectualidade, especialmente nas
universidades e na imprensa. Em 1968, Nelson Rodrigues publica uma sátira cruel
à Passeata dos Cem Mil, a maior manifestação da década contra a ditadura
militar. Sob o rótulo de “esquerda festiva”, alfineta as classes médias que
contestavam o regime: “Os Cem Mil eram filhos da alta burguesia. E, com efeito,
não havia, entre os manifestantes, um preto, um favelado, um torcedor do
Flamengo e sequer um desdentado. Os Cem Mil tinham uma saúde dentária de
artista de cinema. Um turista, que por aqui passasse e os visse, havia de
perguntar: - Mas a alta burguesia quer tomar o poder que já tem?” Em outra
crônica do mesmo ano, perguntaria pelas figuras obrigatórias nas manifestações
populares que, segundo ele, não estavam presentes nem nas passeatas nem nas
fotografias da revista Manchete: “os negros, o vendedor de laranjas, o batedor
de carteira e a mãe plebéia, a santa crioula que tira o seio negro e generoso e
dá de mamar ao crioulinho sôfrego”.
Em outubro de 1969, noventa dias
depois de criado O Pasquim, o confronto já era aberto. “De vez em quando, vem
alguém me dizer: - O
Pasquim te meteu o pau! Ora, não me considero uma glória oficial”, escreveu
Nelson Rodrigues em uma crônica amargamente intitulada “Humoristas Rancorosos”.
Nela, o cronista propõe uma análise histórica sobre o humor nacional. “Sabemos
que o brasileiro é o único povo que faz piada. Se não temos um vampiro, estejam
certos: - é a
piada que torna inviável qualquer Drácula brasileiro. No fundo, no fundo, a piada
é um gesto de amor. É ou era. Mas os tempos passam e os usos, costumes,
valores, sentimentos vão mudando”. Ao comparar os humoristas da velha geração
com as críticas esquerdistas de seu tempo, conclui, certeiro: “Há muitos anos
que não acho graça nos humoristas brasileiros. Mas sempre achei que o defeito
era meu. Só agora é que, acidentalmente, lendo O Pasquim, vejo que as coisas
mudaram muito. Deixando de lado duas ou três exceções, faz-se, no Brasil, o
humorismo do ressentimento”.
De fato, era um desafio preservar
a leveza e a eficácia do humor nos anos de chumbo. Com a pauta das edições
sempre no campo de lutas das esquerdas ou, pelo menos, com um forte sentimento
de oposição à ditadura, os pasquinianos não cansavam de estimular a polêmica
entre intelectuais. Suas entrevistas, realizadas ora em botecos, ora na
redação, tornaram-se momentos de discussões acirradas sobre desafetos e
ex-amigos. Em maio de 1970, Chico Anísio, um dos astros do humorismo
televisivo, respondeu assim quando lhe pediram sua opinião sobre Nelson
Rodrigues: “É invejoso em primeiro lugar. (...) Tudo o que ele escreve, as
coisas mais dramáticas, eu acho graça. Eu acho ele um tremendo humorista,
embora ele pense que é um dramaturgo”. Dois anos depois, o entrevistado seria o
escritor Antonio Callado (1917-1997), autor de um dos romances referenciais
sobre a luta armada: Quarup, de 1967. Callado havia sido amigo íntimo de Nelson
Rodrigues, que o transformara em personagem de vários de seus escritos nos
jornais. A amizade foi sepultada quando Nelson publicou a crônica “Adeus a um
amigo socialista”. No texto, indagava como um intelectual, com “um sorriso bem
ensaiado, de uma compassiva ironia”, podia defender o assassinato de inocentes,
isto é, que para os guerrilheiros fosse legítimo executar embaixadores. Não foi
possível comprovar que Callado realmente tenha dito isso, mas com certeza
Nelson generalizou uma idéia dele. Quando os entrevistadores de O Pasquim
abordaram o tema, Callado afirmou que, na República, “as idéias são tidas como menos
importantes que os amigos”. E emendou, ácido: “Nelson Rodrigues é o grande
clássico das Forças Armadas”.
Entre as teses destiladas por Nelson, a que mais irritava Ziraldo, Jaguar e companhia era de que as esquerdas e os socialistas dominavam as redações dos jornais. Como acusações do gênero eram publicadas quase diariamente nas páginas de O Globo, suas crônicas eram vistas como um pedido para que a polícia prendesse jornalistas. Soava como dedurar colegas e profissionais da classe, “uma vocação legítima de pelego jornalístico” e “pau-mandado da direita”, nas palavras de O Pasquim.
Entre as teses destiladas por Nelson, a que mais irritava Ziraldo, Jaguar e companhia era de que as esquerdas e os socialistas dominavam as redações dos jornais. Como acusações do gênero eram publicadas quase diariamente nas páginas de O Globo, suas crônicas eram vistas como um pedido para que a polícia prendesse jornalistas. Soava como dedurar colegas e profissionais da classe, “uma vocação legítima de pelego jornalístico” e “pau-mandado da direita”, nas palavras de O Pasquim.
As esquerdas também procuravam
reduzir seus méritos artísticos, lançando mão de um discurso moralista: o
dramaturgo era tachado de polêmico, maldito e tarado. Mas isso era como atirar
na água. O próprio Nelson definia-se como um espectador privado e intimista dos
costumes e obsessões da sociedade brasileira: “O buraco da fechadura é,
realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo
pornográfico”. Não escondia de ninguém que adorava uma polêmica, cultivando
seus desafetos com todo esmero. Para isso, contava com um espaço privilegiado
nas páginas dos principais jornais do Brasil, para os quais escrevia desde os
13 anos de idade. E foi entre 1967 e 1977 que mais se dedicou às crônicas,
publicadas em três jornais (Jornal dos Sports, Correio da Manhã, O Globo), além
de lançar livros de memórias e confissões. Em contrapartida, escreveu apenas
uma peça no período (“Anti-Nelson Rodrigues”, em 1973). Nas mais de sete mil
crônicas que assinou, passava de temas relativamente amenos, como futebol,
comportamento e relações amorosas, aos acirrados debates políticos e culturais
da época, confrontando sedutoras novidades, como o poder jovem, o comunismo, o
feminismo e as passeatas.
A batalha ideológica travada
entre os intelectuais do humor mobilizou até os leitores do tablóide semanal.
Na sessão “Cartas” da edição de janeiro de 1970, opiniões sentimentais davam
densidade às polêmicas. “A intelectualidade pequeno-burguesa tem n’O Pasquim o
seu órgão oficial e a coisa tende a se firmar como tal. Com o tempo, O Pasquim
irá não somente refletir normas, como também ditar normas, e isso é muito
sério. É preciso que vocês saibam sempre o que estão fazendo e até onde devem
ir. Devem procurar isolar também a intelectualidade festiva, que procura fazer
do jornal um oásis de frescura”, provocou um leitor paulista. Outro, também de
São Paulo, demonstrava desdém pelos dois lados contendores: “O sujo falando do
mal lavado. Pior que o Nelson Rodrigues só O Pasquim. Pois se o que o sr.
Nelson Rodrigues escreve não tem conteúdo, pelo menos escreve português certo
por linhas tortas. O Pasquim, além de apresentar aberrações em português, não
tem conteúdo”. O difícil é saber se as cartas eram reais ou inventadas pela
própria equipe do jornal.
Em 1972, um drama pessoal colocou
os pasquinianos e Nelson Rodrigues do mesmo lado da trincheira. Julgado por
atos contra a Segurança Nacional, Nelson Rodrigues Filho foi condenado a mais
de 70 anos de prisão. Assim o cronista, que nunca escondera seu apoio ao
regime, viu-se defendendo a anistia e amargou a pavorosa verdade de que seu
nome e sangue, Nelsinho, fora torturado nos cárceres da ditadura.
Em carta publicada no Jornal do Brasil em meados de 1979, Nelson Rodrigues dirigiu-se diretamente ao presidente da República, João Batista Figueiredo (1918-1999), num tom que misturava lirismo e cáustica ironia sobre a clandestinidade, a prisão e a tortura do filho, e pediu a anistia nestes termos: “Ora, um presidente não pode passar por um amanuense. Há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de uma misericórdia, a décima parte de um perdão não tem sentido. Imagine o preso chegando à boca da cena para anunciar: – ‘Senhoras e senhores, comunico que fui quase anistiado’”.
Para O Pasquim, que era considerado o jornal dos presos políticos e exilados (muitas vezes entrevistados na prisão ou no exílio), a luta era diferente: anistia sim, mas não para os dois lados. Na segunda semana de setembro daquele ano, publicaram sua posição definitiva: “Um jornal a favor dos que são contra”. Na mesma edição, além de charges que denunciavam os rumos do projeto governamental, na sessão “Dicas”, Ziraldo apresentou uma concepção de anistia “Anti-Nelson Rodrigues”: “Anistia não é troca. Queremos anistia ampla, geral e irrestrita, mas não recíproca. Lutar por anistia, querer a anistia não é ter bom coração. É um ato político. Quem mata nos cárceres pessoas indefesas e amarradas não pode ser anistiado”. A comparação dos dois textos deixa claro que, apesar de sua trágica situação, Nelson mantinha-se fiel ao tom irônico de suas crônicas. Enquanto isso, até críticas internas reconheciam que o jornal e seus articulistas, depois de dez anos, estavam se tornando muito sérios, pouco criativos e mesmo mal-humorados.
Com a ditadura chegando ao fim, as coisas haviam mudado muito. Ficou a lição de que a História do Brasil tinha sido muito mais complexa do que as guerras humorísticas. Na verdade, tinha sido mais dolorosa, como se obedecesse a uma espécie de lógica do pior. Algo como sugeriu o filósofo Clément Rosset, citando Auguste Comte: “Sejamos felizes, tudo vai mal”.
Em carta publicada no Jornal do Brasil em meados de 1979, Nelson Rodrigues dirigiu-se diretamente ao presidente da República, João Batista Figueiredo (1918-1999), num tom que misturava lirismo e cáustica ironia sobre a clandestinidade, a prisão e a tortura do filho, e pediu a anistia nestes termos: “Ora, um presidente não pode passar por um amanuense. Há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de uma misericórdia, a décima parte de um perdão não tem sentido. Imagine o preso chegando à boca da cena para anunciar: – ‘Senhoras e senhores, comunico que fui quase anistiado’”.
Para O Pasquim, que era considerado o jornal dos presos políticos e exilados (muitas vezes entrevistados na prisão ou no exílio), a luta era diferente: anistia sim, mas não para os dois lados. Na segunda semana de setembro daquele ano, publicaram sua posição definitiva: “Um jornal a favor dos que são contra”. Na mesma edição, além de charges que denunciavam os rumos do projeto governamental, na sessão “Dicas”, Ziraldo apresentou uma concepção de anistia “Anti-Nelson Rodrigues”: “Anistia não é troca. Queremos anistia ampla, geral e irrestrita, mas não recíproca. Lutar por anistia, querer a anistia não é ter bom coração. É um ato político. Quem mata nos cárceres pessoas indefesas e amarradas não pode ser anistiado”. A comparação dos dois textos deixa claro que, apesar de sua trágica situação, Nelson mantinha-se fiel ao tom irônico de suas crônicas. Enquanto isso, até críticas internas reconheciam que o jornal e seus articulistas, depois de dez anos, estavam se tornando muito sérios, pouco criativos e mesmo mal-humorados.
Com a ditadura chegando ao fim, as coisas haviam mudado muito. Ficou a lição de que a História do Brasil tinha sido muito mais complexa do que as guerras humorísticas. Na verdade, tinha sido mais dolorosa, como se obedecesse a uma espécie de lógica do pior. Algo como sugeriu o filósofo Clément Rosset, citando Auguste Comte: “Sejamos felizes, tudo vai mal”.
Elio Chaves Flores é professor da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor da tese “República às Avessas:
narradores do cômico, cultura política e coisa pública no Brasil contemporâneo
(1930-1993)”, UFF, 2002.
Saiba Mais - Bibliografia:
Saiba Mais - Bibliografia:
BRAGA, José Luiz. O Pasquim e os Anos 70: mais pra epa que pra oba. Brasília: Editora UnB, 1991.
CASTRO, Rui. O Anjo Pornográfico:
a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e
Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Edusp, 2003.
RODRIGUES,
Nelson. O Reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
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