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Quinta-feira, 26 de Junho de 2014 | ISSN 1519-7670 - Ano 18 - nº 804
1964 + 50
MD-2 - Lembranças
da mídia ‘esquecida’ pela ditadura
Por Laurindo Lalo
Leal Filho em 15/04/2014 na edição 794
“Dia 1º de abril de 1964. Cinelândia, Rio de Janeiro. Em frente ao Clube
Militar, um garoto de 12 anos começa a gritar ‘Jangooo’, ‘Jangooo’. Um homem
alto e magro, cabelo cortado recente, bigodes finos, aponta a sua automática e
explode a cabeça do menino. Nesse dia eu era diretor de jornalismo da Rede
Excelsior de Televisão, na época líder absoluta de audiência. Nessa mesma noite
de 1º de abril, no Jornal de Vanguarda, a cena foi ao ar”, lembra
Fernando Barbosa Lima no livro Gloria in Excelsior escrito por
Álvaro de Moya.
Era o início de uma
longa ditadura e o começo do fim da única rede de televisão brasileira que, um
dia, alinhou-se a um projeto nacional de desenvolvimento autônomo liderado pelo
presidente João Goulart.
O Jornal de Vanguarda, havia sido premiado pela Eurovisão, a
rede europeia de televisões públicas, como melhor do mundo no seu gênero,
superando os programas de notícias da BBC de Londres. Com recursos e
independência, a Excelsior criava um novo padrão de qualidade para a TV
brasileira, copiado depois pela Globo.
Ao tiro na
Cinelândia seguiu-se a invasão da emissora por policiais armados e a derrocada
de um império comandado pelo empresário Mário Wallace Simonsen. Figura
esquecida intencionalmente pela mídia de hoje já que sua lembrança destrói a
lenda golpista de que o Brasil de Jango caminhava para o comunismo.
O dono da
Excelsior, e também da Panair do Brasil e da maior empresa exportadora de café
do país, a Comal, de comunista não tinha nada. Tinha, isso sim, convicção que
seus negócios só prosperariam se o país crescesse de forma independente, livre
do jugo imposto pelos Estados Unidos. Disputava o mercado internacional do café
com o grupo Rockfeller.
Esteve ao lado da
ordem democrática durante os governos Juscelino, Jânio e Jango. Mandou um avião
da Panair buscar o vice-presidente Goulart em Pequim, durante a crise da
renúncia de Jânio em 1961 e hospedou-o em seu apartamento de Paris, durante uma
das escalas da longa viagem. Os golpistas nunca o perdoaram.
Envenenamento simbólico
Os projetos de reformas de base enviadas por Jango ao Congresso, em
março de 1964, se efetivados, encaminhariam o Brasil para o patamar de
“potência independente, com ascendência sobre a América Latina e a África”, no
dizer do sociólogo Octavio Ianni no livro O colapso do populismo no
Brasil.
A essa política se
contrapôs, com o golpe, um modelo de capitalismo associado e dependente
mantendo o Brasil na condição de satélite da órbita centralizada pelos Estados
Unidos. Coube à mídia dar respaldo à subserviência, sem o qual a ação dos
golpistas e depois a da ditadura, teria sido mais árdua.
No centro desse processo, como coordenador do trabalho de conquista dos
corações e mentes da sociedade, estavam o Instituto de Pesquisas Sociais, o
IPES e o Instituto de Ação Social, o IBAD. Um complexo de produção ideológica
que “publicava diretamente ou através de acordo com várias editoras, uma série
extensa de trabalhos, incluindo livros, panfletos periódicos, jornais, revistas
e folhetos. Saturava o rádio e a televisão com suas mensagens políticas e
ideológicas”, como mostra a pesquisa de Rene Armand Dreifuss, publicada no
livro 1964: a conquista do Estado.
A máquina da
desinformação, azeitada por recursos captados nas elites empresariais pagava os
donos de jornais, rádios e TVs ou diretamente os jornalistas, executores das
pautas de interesse dos golpistas.
É precioso o relato
de Rene Dreyfuss ao demonstrar como “o IPES organizava equipes de
‘manipuladores de notícias’ que preparavam e compilavam material sob a
coordenação geral do general Golbery do Couto e Silva, especialista em guerra
psicológica. Esses manipuladores se responsabilizavam pelas ‘campanhas de
pânico’. A ‘campanha da ameaça vermelha’ empreendida pelo IPES mostrou-se muito
útil na melhoria de sua situação financeira, já que atraiu contribuições de
empresários tomados de pânico e profissionais que temiam o futuro”.
Segundo Dreyfuss, “eram também ‘feitas’ em O Globo notícias
sem atribuição de fonte ou indicação de pagamento e reproduzidas como
informação factual. Dessas notícias, uma que provocou um grande impacto na
opinião pública foi a de que a União Soviética imporia a instalação de um
Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as formas de pressões internas e
externas para aquele fim”.
O envenenamento
simbólico de parte da população era feito com muita competência e a própria
mídia apresentava possíveis antídotos, além do golpe que estava sempre presente
no horizonte.
Versões
distorcidas
Sem registros
históricos, um desses antídotos só não é risível porque o momento não estava
para brincadeiras. A TV Paulista e a Rádio Nacional de São Paulo, que depois
seriam vendidas para as Organizações Globo, numa operação até hoje contestada
na justiça, propiciaram um espetáculo bizarro na Semana Santa que antecedeu o
golpe.
O apresentador do programa de rádio diário A hora da Ave Maria,
Pedro Geraldo Costa foi a Jerusalém às expensas das emissoras e de lá trouxe
uma cruz enorme de madeira que chegou ao Rio de Janeiro de avião e seguiu em
peregrinação para São Paulo trafegando lentamente pela via Dutra, com uma
parada simbólica em Aparecida. Nas proximidades da capital foi içada por um
helicóptero e suavemente depositada no Vale do Anhangabaú em meio a multidão
convocada pelo rádio e pela TV para orar junto à cruz pelo país. Episódio
esquecido que, no entanto, se articula com as marchas religiosas e golpistas do
período, insufladas pela mídia.
Como depois as
pesquisas do Ibope mostraram, essas multidões arregimentadas pelo conluio
igreja-meios de comunicação representavam parcelas minoritárias da população. A
maioria apoiava o governo Jango e a sua política reformista. Mas até hoje,
passados 50 anos, o golpe ainda é apresentado pela mesma mídia como tendo sido
respaldado pelo povo. Foi apenas por aqueles que se deixaram levar pela
insidiosa campanha midiática do início dos anos 1960.
Apesar do desfecho trágico que levou o Brasil a uma ditadura
sanguinária, em termos de mídia estávamos melhor naquela época do que hoje. Nas
bancas, a Última Hora era a alternativa aos jornais
reacionários, a TV Excelsior abria espaço para o contraditório e algumas
emissoras de rádio mantinham-se alheias as pressões golpistas, como a 9 de
Julho de São Paulo, cassada pela ditadura.
Hoje nem isso temos
possibilitando que apenas uma versão, a dos golpistas, continue circulando pela
mídia tradicional. O “esquecimento” de figuras como a de Mário Wallace Simonsen
e de episódios como a da cruz que veio de Jerusalém são propositais. Se lembrados
poriam em xeque a ameaça comunista e o apoio espontâneo das massas ao golpe.
Versões
distorcidas, bem ao gosto do Instituto Millenium que está aí como um fantasma a
lembrar alguns traços assustadores dos antigos IPES e do IBAD.
***
Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é
professor de Jornalismo da ECA-USP e autor, entre outros, de A TV sob
controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão (Summus
Editorial). Twitter: @lalolealfilho
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