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Quinta-feira, 26 de Junho de 2014 | ISSN 1519-7670 - Ano 18 - nº 804
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ENTREVISTA / BEATRIZ KUSHNIR
MD-7 - A mídia
não faz mea culpa, faz peça publicitária
Por Caio Hornstein em 08/04/2014 na edição 793
Reproduzido da Carta Maior, 31/3/2014; título original “A mídia que abraçou a
ditadura não faz mea culpa, faz peça publicitária”
Não é novidade que
a imprensa brasileira teve participação efetiva na articulação civil-militar
que derrubou o presidente João Goulart. Com a exceção de alguns poucos veículos
de comunicação, como o jornal carioca Última Hora e a TV Excelsior, que se
colocaram em defesa da ordem democrática e foram posteriormente perseguidos
pelo regime militar, todos os principais grupos de mídia deram apoio explícito
à intervenção militar.
Passados cinquenta
anos do episódio histórico que deu início a uma ditadura que durou mais de 21
anos, os veículos de mídia que apoiaram o golpe têm se visto na obrigação de
dar explicações que relativizem sua participação no evento. Valendo-se de
desavergonhado contorcionismo retórico, os editoriais dos jornalões têm, em
linhas gerais, justificado a opção pelo golpismo como fruto de um período
conturbado em que extremismos de todos os lados não teriam permitido um
posicionamento moderado.
A leitura de tais
editorais deixa claro que esse mea culpa não representa um genuíno
arrependimento por parte dos barões da mídia, que mantêm até hoje os mesmos
vícios e práticas de 1964; ao contrário, são apenas peças publicitárias que
pretendem blindar os veículos de comunicação de possíveis críticas, como se
estes tivessem rompido absolutamente com seu passado autoritário.
Uma mentira ajuda a
fortalecer a imagem redentora que os grupos de comunicação querem projetar de
si mesmos: a ideia de que, depois de terem contribuído para o sequestro da
ordem democrática, arrependeram-se e passaram a fazer oposição heroica à
ditadura. A prova irrefutável dessa postura redentora e do rompimento do
casamento entre mídia e militares, defendem, teria sido a implacável censura de
que foram vítimas.
Mentiras que desmoronam à luz dos fatos. O livro Cães de Guarda
– jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, da
historiadora Beatriz Kushnir, é fundamental para compreender as relações entre
mídia e censura durante a ditadura civil-militar. Contrariando a posição
revisionista dos grupos de comunicação, a obra de Kushnir rememora episódios em
que houve colaboracionismo explícito entre militares e veículos de comunicação,
trazendo à tona o emblemático exemplo da Folha da Tarde, periódico cuja redação
foi dominada por policiais. Além disso, Cães de Guarda esmiúça a
relação entre censores e jornalistas, expondo uma convivência por vezes muito
menos tensa do que se supõe.
Em entrevista à Carta Maior, Beatriz Kushnir desconstrói o mito de que houve
oposição ferrenha entre a censura do regime militar e os grandes grupos de
comunicação. Confira.
Os grandes grupos de comunicação no
Brasil realmente fizeram um enfrentamento combativo à ditadura militar?
Beatriz Kushnir – A cada vez que escuto uma pergunta como
esta, eu penso: se houve tanta resistência, por que a ditadura perdurou 21
anos? Creio ser mais que oportuno, nesse momento de ponderações sobre os 50
anos do Golpe, retomar uma ideia apontada, quando dos 30 anos do AI-5, pelo
jornalista Janio de Freitas.
Freitas, na época,
publicou na Folha de S. Paulo, uma advertência ainda não cumprida por seus
pares: “a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais do que
aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura. (...) Os arquivos guardam
coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói da
antiditadura tem dependido só de se passar por tal”. Portanto, traçar os papéis
da imprensa no período, é fazer um mergulho profundo nestes acervos. E ao
cotejá-los com entrevistas orais, perceber as duas imagens: a que salta das
páginas dos jornais, e a construção atual das memórias de si.
Quando se fala em censura aos grandes
veículos de imprensa durante a ditadura militar, a publicação de versos de
Camões no jornal Estado de S. Paulo e de receitas culinárias no Jornal da Tarde
em espaços censurados é uma lembrança recorrente. Esse tipo de atitude
incomodava efetivamente o regime militar?
B.K. – O jornalista Oliveiros Ferreira, que por décadas trabalhou
no Estadão, me contou, em entrevista, que a Redação recebia ligações
indagando que a receita de bolo na primeira página do Jornal da
Tarde estava errada. O bolo solava. Ou, como sublinhou Coriolano de Loyola
Cabral Fagundes, censor desde 1961 e que atuou no Estadão, os poemas de
Camões foram ali uma concessão.
Certamente a
censura federal apostava que o leitor não entenderia o porquê destas
estratégias. O ponto fundamental da lógica censória é, como brilhantemente
descreveu o jornalista Cláudio Abramo, não se deixar capturar pelo equívoco de
que “(...) no Brasil, o Estado desempenha papel de controlador maior das
informações. Mas não é só o Estado, é uma conjunção de fatores. O Estado não é
capaz de exercer o controle, e sim a classe dominante, os donos. O Estado
influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos e não do
Estado. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o próprio dono do
jornal. Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos
jornalistas ingênuos ficou a impressão de que eles e o patrão tinham o mesmo
interesse em combater a censura”.
Uma característica do controle da imprensa
no regime militar foi a existência da autocensura em diversas redações. Ou
seja, o governo transferia a responsabilidade da censura para os próprios
administradores dos veículos de comunicação, que deveriam julgar o que é ou não
publicável. Qual o significado dessa medida?
B.K. – A autocensura não foi inventada naquele momento. A autocensura é
uma prática constante em qualquer empresa de comunicação. Todo jornalista sabe
disto. O jornal, a rádio, a TV são exemplos de empresas, negócios, lucros.
Vende-se um serviço de utilidade pública: a notícia. Os governos, quando querem
calar as vozes de oposição nos meios de comunicação, soltam verbas
publicitárias. Como toda empresa tem um dono, nos meios de comunicação só é
publicado o que o patrão acha conveniente.
Em seu livro Cães de Guarda, você expõe a trajetória da Folha da
Tarde, periódico do grupo Folha que contou com policiais em sua redação e se
notabilizou por ocultar e distorcer a morte de militantes políticos. Além de um
enfrentamento passivo aos abusos do regime militar, é possível dizer que, em
muitas ocasiões, os grandes grupos de mídia foram colaboracionistas?
B.K. – Em vários graus e tonalidades, em momentos diferenciados, as
grandes corporações de comunicação apoiaram e pediram o golpe; aproveitaram-se
do momento autoritário e repressivo para ampliar seus universos de atuação,
diversificando os negócios; no pós-1979, criaram uma visão para si de
resistência. A trajetória deste setor, como de diversos outros da sociedade
brasileira, demonstra as raízes autoritárias e conservadoras que nos seguram e
que estão distantes da imagem idealizada de que somos democratas.
É correto afirmar que, à exceção de
divergências pontuais, os grandes veículos de imprensa estavam, em linhas
gerais, satisfeitos com a condução política do governo militar e concordavam
sobre a necessidade de repressão após o AI-5?
B.K. – Os dirigentes das empresas brasileiras estavam satisfeitos com o
milagre econômico e, os que souberam, aproveitaram muitíssimo daquele momento.
Certa vez, ouvi uma explicação que o fim da ditadura estava intimamente ligado
à crise do milagre. Não creio que precisamos ser tão simplistas. Mas este é um
ponto importante a se considerar.
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Caio Hornstein, da Carta Maior
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