Quinta-feira,
26 de Junho de 2014 | ISSN 1519-7670 - Ano 18 -
nº 804
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MÍDIA & MEMÓRIA
MD-12 - Ditadura
ainda polariza a imprensa
Por Gabriel Brito
em 15/05/2012 na edição 694
Publicado originalmente no Correio da Cidadania; título original “Ditadura continua polarizando a
imprensa brasileira”
O país continua
recheado de confrontações políticas e ideológicas em torno do legado da
ditadura que vigorou no país de 1964 a 1985. Não se trata de nenhuma
casualidade, uma vez que a mídia comercial incitou, festejou e apoiou incondicionalmente
o golpe até os seus estertores, quando, de forma obviamente oportunista, passou
a acompanhar os ventos que já sopravam para a democracia. Do outro lado, estão
os herdeiros que até hoje tentam substituir os órgãos de imprensa desaparecidos
nos anos de chumbo, em geral recheados de jornalistas que conheceram de perto a
repressão e o arbítrio fardado.
Como o Brasil até
hoje não se confrontou de fato com seu passado sombrio e com a punição dos
carrascos que torturaram, mataram e sumiram a bel-prazer com corpos e direitos
de opositores políticos, seguem as disputas nas ruas, nas comunicações e na
justiça por abertura de arquivos, julgamento de repressores e aplicação de
penas punitivas contra aqueles que cometeram os imprescritíveis crimes de lesa
humanidade.
Aliás, a própria
qualificação de tais crimes já mostra o partido tomado pelos citados setores da
imprensa. Grupos como Globo, Folha, Estado e Abril insistem nas teses
defendidas na lei de Anistia que os próprios militares promulgaram em seu favor.
No entanto, convenções e legislações internacionais assinadas pelo Brasil se
chocam diretamente com tais preceitos, tidos como inaceitáveis pelo direito
internacional. Caso contrário, ficaria difícil punir genocidas, ditadores,
torturadores e assassinos em geral de outros regimes autoritários, conforme já
procederam alguns países.
Pressões
e chantagens dos militares
Por conta disso, o Brasil voltou a ficar na alça de mira da luta mundial
pelos direitos humanos, após ser condenado pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, vinculada à Organização dos Estados Americanos, no caso
referente à guerrilha do Araguaia, quando desacatou a ordem de buscar os restos
mortais dos guerrilheiros ali mortos em combates contra o exército, que por sua
vez continua a homenagear os facínoras do regime de exceção e mostrar lamentável negligênciana elucidação de seus crimes.
Como era de se imaginar, a mídia que bateu continênciai (*) gnorou o fato,
estampando pequenas notas e mostrando nenhuma indignação com relação à falta de
respeito do país e do Estado brasileiro para com suas vítimas. No lado oposto,
não faltou a cobertura que uma relevante condenação sofrida pelo país exige,
reforçada pelo fato de termos no momento uma ex-guerrilheira na presidência,
que por sua vez declarou que os direitos humanos seriam caríssimos ao novo
governo.
Na mesma esteira – após anos de luta de alguns setores realmente
progressistas que ocuparam cargos oficiais nos últimos mandatos, além das
vítimas, familiares e militantes anti-ditadura, complementados pelas referidas
pressões e condenações externas –, chegou a hora que o país teve de instaurar
algum mecanismo de investigação do passado ditatorial, trazendo a público seu
rosário de atrocidades. Inicialmente chamado deComissão da Verdade, Memória e
Justiça, esse instrumento a ser implementado pelo atual governo democrático
logo se reduziu apenas ao seu primeiro terço, atendendo exatamente a pressões e
chantagens dos militares, que encontraram na mídia a eles afinada uma generosa
tribuna de revisão e distorções históricas, além da odiosa retórica do medoe das eventuais consequências que mexer no passado imundo do país
traria.
Outro poço de obscuridade
Nesse bojo, algumas
posições foram paulatinamente se radicalizando. De um lado, os militares
voltavam a ranger dentes, atentos à crescente indignação na população sobre sua
impunidade, já vista por boa parte das pessoas como responsável direta pela
cultura, precisamente, de impunidade vigente no país – além do nefasto legado
de violências praticadas pelas atuais “forças de segurança”, que cometem as
mesmas ilegalidades e barbaridades do regime de exceção, porém, em quantidade
incomparavelmente superior, caso praticamente único no mundo.
Enquanto os
familiares e vítimas da ditadura, com seus advogados, começaram a procurar
novas interpretações jurídicas para incriminá-los, contando também com a ajuda
do Ministério Público, os militares se articulam para protelar o quanto puderem
a revisão de sua Lei de Anistia, reconhecida pelo STF como válida. Trata-se de
decisão política sem respaldo algum na comunidade e, como dito, direito
internacionais. No entanto, serve pra explicar como o Estado brasileiro é
repleto de beneficiários e ex-aliados da ditadura, que agora tratam de travar ao
máximo a luta por justiça e punição.
Apesar disso, os discursos carregados de cinismo na defesa pelo
esquecimento do passado, baseados em falsas premissas conciliadoras, continuam
a ecoar fortemente pela mídia conservadora. Chamou atenção editorial da Folha
de S.Paulo, talvez o jornal mais descaradamente aliado dos militares,
intitulado “Respeitem a lei de Anistia”, cujo título e tom dispensam
comentários. Fora isso, qualquer nota ou declaração dos chamados “milicos de
pijama” ganha espaço nas páginas dos periódicos dos referidos grupos, sempre em
viés de ameaça, sugerindo que nossa atual ordem constitucional se encontrará
sob risco caso se invista seriamente na elucidação e punição dos crimes da
ditadura, além da abertura de seus arquivos – por sinal, outro poço de
obscuridade, existindo até hoje importantes documentos em mãos dos repressores.
Um
jornalismo de memória
Para fazer o mínimo
jogo de cena, vez por outra aparece a opinião ou uma modesta matéria com o lado
vitimado, costumeiramente identificado de forma pejorativa como bandos de
esquerdistas e comunistas então radicalizados, o que está longe de refletir a
realidade da oposição ao regime na época. No entanto, nunca se viram opiniões
de seus tradicionais articulistas em favor desse lado com o mesmo volume e
contundência das tergiversações pró-militares.
Mais uma vez,
nota-se uma gritante diferença ao se comparar este jornalismo com o de outros
veículos de comunicação menos abastados e conservadores. Nestes, podemos
verificar grande quantidade de matérias e artigos dando voz às vítimas da
ditadura, além de uma clara orientação editorial de punição de tais crimes e um
considerável trabalho em favor da memória, a ser incutida nas novas gerações de
leitores. Em geral, tais veículos possuem em suas redações e conselhos
editorais jornalistas que sofreram diretamente na carne as violências e
censuras perpetradas pela ditadura. São pessoas que trabalharam em diversos
jornais e revistas que não mais existem exatamente por não terem se curvado aos
militares e resistido até onde fosse possível, inclusive na clandestinidade. Ou
trabalharam nos que ainda existem, até a “asfixia” total.
Enquanto os referidos veículos dos monopólios midiáticos oferecem todo o
espaço desejado pelos oficiais da reserva, sob a alegação de que estes não
devem obediência ao Executivo por já não serem da ativa, a mídia da
contracorrente vem elevando seu empenho na prática de um jornalismo de memória, mostrando aos
brasileiros de hoje a relação direta que este período tem com nosso arremedo de
democracia, até hoje cerceada e monopolizada pelos mesmos oligarcas, latifundiários
e industriais que tiraram João Goulart do poder pela força dos tanques e fuzis.
A
polarização do espectro jornalístico
Outro momento que marcou essa confrontação midiática foi o 48º
aniversário do golpe – ou “revolução”, como insistem em chamar os
frequentadores do Clube Militar, desta vez alvo de protestos em sua porta.
Sintomaticamente, a PM carioca, até outro dia em greve que pedia, e até
recebia, a solidariedade popular, reprimiu os manifestantes, inclusive ferindo
alguns com suas famosas armas “não-letais” israelenses. No mesmo fim de semana,
o troco foi dado através de um desfile do bloco de carnaval denominado Cordão da Mentira, organizado por
alguns movimentos sociais, tanto da política como da cultura, com respaldo de
jornalistas e veículos de mídia alternativa. O ato/festa causou impacto ao
fazer seu itinerário em cima de marcos simbólicos dos anos de chumbo, como a
sede da TFP e a entrada da Folha de S.Paulo, culminando no atual
Memorial da Resistência, antiga sede do mal-assombrado Dops, onde se torturou e
matou como em poucos lugares.
Na sequência disso, vieram os “escrachos”, inspirados nos
atos da população argentina de visitar casas de velhos repressores e
denunciá-los pela vizinhança, expondo-os à realidade de suas biografias de
maneira que o Estado brasileiro ainda não se encorajou a fazer. Organizados
pelo recém-formado Levante Popular da Juventude, os escrachos deram razoável
retorno e novo fôlego na luta pelo combate à impunidade ditatorial.
Tais fatos,
ocorridos num curto espaço de tempo, tornaram a ter a repercussão
característica de cada espectro jornalístico e evidenciaram sua polarização. Na
mídia comercial, destaque um pouco maior para os protestos diante do Clube
Militar, fria e acriticamente, enquanto os atos de rua posteriores à festa dos
saudosos da ditadura praticamente não foram repercutidos. Como não poderia
deixar de ser, no outro lado da trincheira o destaque foi grande, em geral com
maior cobertura presencial e posições elogiosas às manifestações populares.
Menos
barbárie e mais democracia
Dessa forma, os
debates em torno da herança (e o que dela fazer) da ditadura civil-militar
geram uma grande polarização em nossa imprensa, atiçada pela culpa que
eternamente carregarão e tentarão esconder os barões da mídia, cujos impérios
se solidificaram exatamente por obra deste regime. E por outro lado, pela não
menos duradoura indignação daqueles que praticam o jornalismo guiados por seus
preceitos éticos, sociais e humanitários, autênticas cláusulas pétreas deste
ofício. Como se vê, não existe qualquer resquício de “imparcialidade”, outra
grande lenda inventada pela mídia patronal. Sempre partidária dos interesses da
atual ditadura, a de mercado, essa mídia apela a tais princípios de isenção –
ou frigidez – em momentos que lhe convém, quando o assunto incomoda a tal ponto
que, na verdade, seus donos sequer gostariam de abordá-lo.
No sentido oposto, a corrente derrotada na ditadura segue em sua luta
por um jornalismo e um país menos bárbaros e mais democráticos, produzindo cada
vez mais livros,reportagens, editoriais, documentários sobre esse período de
grande vergonha e humilhação. Interpreta que esse momento histórico até hoje
influencia e determina rumos na vida de nossa população, seja na política, na
distribuição de renda e terra, na educação, na cultura ou nos mais variados
direitos humanos.
Cabe a cada
cidadão, cada vez mais, escolher por onde se informar e orientar.
***
[Gabriel Brito, do Correio da Cidadania]
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