MD-39
- A grande mídia e o golpe de 64
Por Venício A. de Lima em 17/03/2009 na
edição 529
No
debate contemporâneo sobre a relação entre história e memória, argumenta-se com
propriedade que a história não só é construída pela ação de seres humanos em
situações específicas, como também por aqueles que escrevem sobre essas ações e
dão significado a elas. Sabemos bem disso no Brasil.
Ao
se aproximar os 45 anos do 1º de abril de 1964 e diante de tentativas recentes
de revisar a história da ditadura e reconstruir o seu significado através,
inclusive, da criação de um vocabulário novo, é necessário relembrar o papel –
para alguns, decisivo – que a grande mídia desempenhou na preparação e
sustentação do golpe militar.
Referência
clássica
A participação ativa dos grandes grupos
de mídia na derrubada do presidente João Goulart é fato histórico fartamente
documentado. Creio que a referência clássica continua sendo a tese de doutorado
de René A. Dreifuss (infelizmente, já falecido), defendida no Institute of
Latin American Studies da University of Glasgow, na Escócia, em 1980 e
publicada pela Editora Vozes sob o título 1964: A Conquista do Estado (7ª
edição, 2008).
Através
das centenas de páginas do livro de Dreifuss o leitor interessado poderá
conhecer quem foram os conspiradores e reconstruir detalhadamente suas
atividades, articuladas e coordenadas por duas instituições, fartamente
financiadas por interesses empresariais nacionais e estrangeiros ("o bloco
multinacional e associado"): o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação
Democrática e o IPES, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais.
No
que se refere especificamente ao papel dos grupos de mídia, sobressai a ação do
GOP, Grupo de Opinião Pública, ligado ao IPES e constituído por importantes
jornalistas e publicitários. O capítulo VI, sobre "a campanha
ideológica", traz ampla lista de livros, folhetos e panfletos publicados
pelo IPES e uma relação de jornalistas e colunistas a serviço do golpe em
diferentes jornais de todo o país. Além disso, Dreyfuss afirma (pág. 233):
O IPES conseguiu estabelecer um
sincronizado assalto à opinião pública. Através de seu relacionamento especial
com os mais importantes jornais, rádios e televisões nacionais, como: os
Diários Associados, a Folha de S.Paulo,
o Estado de S.Paulo (...)
que também possuía a prestigiosa Rádio Eldorado de São Paulo. Entre os demais
participantes da campanha incluíam-se (...) a TV Record e a TV Paulista (...), o Correio do Povo (RS), O Globo, das Organizações Globo (...) que
também detinha o controle da influente Rádio Globo de alcance nacional. (...)
Outros jornais do país se puseram a serviço do IPES. (...) A Tribuna da Imprensa (Rio),
as Notícias Populares (SP).
Vale
lembrar às gerações mais novas que o poder relativo dos Diários Associados no
início dos anos 1960 era certamente muito maior do que o das Organizações Globo
neste início de século 21. O principal biógrafo de Assis Chateaubriand afirma
que ele foi "infinitamente mais forte do que Roberto Marinho" e
"construiu o maior império de comunicação que este continente já
viu".
A
visão do USIA
Há outro estudo, menos conhecido, que
merece ser mencionado. Trata-se de pesquisa realizada por Jonathan Lane, Ph.D.
em Comunicação por Stanford, ex-funcionário da USIA, United States Information
Agency no Brasil, publicado originalmente no Journalism Quarterly (hoje Journalism & Mass Communication Quarterly),
em 1967, e depois noBoletim nº 11 do Departamento de
Jornalismo da Bloch Editores, em 1968 (à época, editado por Muniz Sodré), sob o
título "Função dos meios de comunicação de massas na crise brasileira de
1964".
Lane
enfatiza a liberdade de imprensa existente no país e a pressão exercida pelo
governo sobre os meios de comunicação utilizando os recursos a seu dispor
(empréstimos, licenças para importação de equipamentos, publicidade, concessões
de radiodifusão e "recursos de partidos comunistas"). A grande mídia,
no entanto, resiste, até porque "o governo não é a única fonte de subsídio
com que contam os jornais. Existem outras, interesses conservadores, econômicos
e políticos que controlam bancos ou dispõem de outros capitais para influenciar
os jornais" (pág. 7).
O
autor, curiosamente, não menciona o IBAD ou o IPES e conclui que as ações do
governo João Goulart e da "esquerda" retratadas nos meios de
comunicação provocaram um "desgaste da antiga ordem baseada na hierarquia
e na disciplina" que se tornou "psicologicamente insuportável"
para os chefes militares e para a elite política, levando, então, ao golpe.
O
artigo de Lane, no entanto, traz um importante conjunto de informações para se
identificar a atuação da grande mídia. Tomando como exemplo a cidade do Rio de
Janeiro – "o centro de comunicações mais importante" –, afirma:
"Apesar
das armas à disposição do governo, Goulart passou um mau bocado com a maior
parte da imprensa. A maioria dos proprietários e diretores dos jornais mais
importantes são homens (e mulheres) de linhagem e posição social, que
freqüentam os altos círculos sociais de uma sociedade razoavelmente
estratificada. Suas idéias são classicamente liberais e não marxistas, e seus
interesses conservadores e não revolucionários" (pág. 7).
No que se refere aos jornais, Lane chama
atenção para a existência dos "revolucionários", de circulação
reduzida, como Novos Rumos, Semanário e Classe Operária (comunistas) ePanfleto (brizolista).
O mais importante jornal de "propaganda esquerdista" era Última Hora, "porta-voz do
nacionalismo-esquerdista desde o tempo de Vargas". Já "no centro,
algumas apoiando Jango, outras censurando-o, estavam os influentes Diário de Notícias eCorreio
da Manhã". E continua:
"Enfileirados contra (Jango)
razoavelmente e com razoável (sic) constância, encontravam-se O Jornal, principal órgão da grande rede de
publicações dos Diários Associados; O Globo, jornal de maior circulação da cidade;
e o Jornal do Brasil,
jornal influente que se manteve neutro por algum tempo, porém opondo forte
resistência a Goulart mais para o fim. A Tribuna da Imprensa, ligada ao principal
inimigo político de Goulart, o governador Carlos Lacerda, da Guanabara (na
verdade, a cidade do Rio de Janeiro), igualmente se opunha ferrenhamente a
Goulart" (págs. 7-8).
Quanto
ao rádio e à televisão, Lane explica:
"Cerca
de metade das estações de televisão do país são de propriedade da cadeia dos
Diários Associados, que também possui muitas emissoras radiofônicas e jornais
em várias cidades. (...) Os meios de comunicação dos Diários Associados,
inclusive rádio e tevê, empenharam-se numa campanha coordenada contra a
agitação esquerdista, embora não contra Goulart pessoalmente, nos últimos meses
que antecederam ao golpe" (pág. 8).
Participação
ativa
A
pequena descrição aqui esboçada de dois estudos que partem de perspectivas teóricas
e analíticas radicalmente distintas não deixa qualquer dúvida sobre o ativo
envolvimento da grande mídia na conspiração golpista de 1964.
A relação posterior com o regime
militar, sobretudo a partir da vigência da censura prévia iniciada com o AI-5, ao
final de 1968, é outra história. Recomendo os estudos de Beatriz Kushnir, Cães de Guarda – Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição
de 1988(Boitempo, 2004) e de Bernardo Kucinski, Jornalistas e Revolucionários – nos tempos da imprensa
alternativa (EDUSP, 2ª. edição 2003).
As Organizações Globo merecem,
certamente, um capítulo especial. Elio Gaspari refere-se ao "mais poderoso
conglomerado de comunicações do país" como "aliado e defensor do
regime" (Ditadura Escancarada, Companhia das Letras, 2004; pág.
452).
Em
defesa da democracia
Não
são poucos os atores envolvidos no golpe de 1964 – ou seus herdeiros – que
continuam vivos e ativos. A grande mídia brasileira, apesar de muitas e
importantes mudanças, continua basicamente controlada pelos mesmos grupos
familiares, políticos e empresariais.
O
mundo mudou, o país mudou. Algumas instituições, no entanto, continuam presas
ao seu passado. Não nos deve surpreender, portanto, que eventualmente
transpareçam suas verdadeiras posições e compromissos, expressos em editoriais,
notas ou, pior do que isso, disfarçados na cobertura jornalística cotidiana.
Tudo,
é claro, sempre feito "em nome e em defesa da democracia".
Por
todas essas razões, lembrar e discutir o papel da grande mídia na preparação e
sustentação do golpe de 1964 é um dever de todos nós.
***
Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política
(NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas
eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed793_jornais_vem_a_publico_confessar_apoio_a_ditadura
Terça-feira, 01 de Julho de 2014 | ISSN
1519-7670 - Ano 18 - nº 805
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