MEA-CULPA DO ‘GLOBO’
MD-21 - Enfim, a primavera da mídia brasileira
Por Alberto Dines em 02/09/2013 na edição 761
Impensável, mas aconteceu. Com destaque, solenidade e
brio, sem justificativas mornas, dubiedades ou disfarces, o Globo,
carro-chefe das Organizações Globo, o maior grupo de mídia do Brasil e um dos
mais importantes do mundo, admitiu – depois de discussões internas que duraram
anos – que o apoio ao golpe militar de 1964 foi um equívoco. Também o apoio à
ditadura que se seguiu ao longo dos 21 anos seguintes.
A monumental e inédita autocrítica (ver íntegra
abaixo) estava na edição digital desde a véspera, sábado (31/8). Na edição
impressa (domingo, 1/9) ocupou duas páginas (14 e 15) com uma chamada discreta
na capa, abaixo do cabeçalho, remetendo ao Projeto Memória, com a digitalização
dos 88 anos de história do jornal.
Não foi a única confissão. O jornal também reconheceu
que a tíbia cobertura da campanha das Diretas Já resultou de um erro de
avaliação político-jornalístico. Porém contestou as acusações de ter conspirado
para derrubar Getúlio Vargas em 1954 e de tentar a manipulação dos resultados
da eleição de Leonel Brizola para o governo do Rio, em 1982 (Caso Proconsult).
O jornal pretendia lançar o Projeto Memória meses
atrás, antes dos protestos de junho, mas assume que o clamor das ruas veio
provar que o reconhecimento do erro era necessário. “A lembrança [do apoio aos
militares] é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É
História.”
Disfunções da concorrência
Rebuliço nas redes sociais e blogs, agito no plantão
dominical das redações. Globonews e Rede Globo permaneceram caladas, no G1 um
insignificante registro. A grande repercussão começará na primeira semana deste
nono mês do ano, a Época Primeira, tempo primordial. Esta primavera pode mudar
o país. Uma nova transparência da imprensa pode criar novos paradigmas para a
sociedade. Três meses depois, a reverberação das ruas pode converter-se
mudanças efetivas.
Indício concreto: o comunicado da Infoglobo
Comunicação e Participações, a holding dos jornais Globo, Extra eExpresso,
onde promete revisar sua política de venda de espaços publicitários. Em outras
palavras: abandonará as práticas de dumping que vinham
impedindo a sobrevivência de qualquer jornal no Rio de Janeiro além desses.
A promessa faz parte de um compromisso formal firmado
com o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). O comunicado foi
publicado no mesmo domingo (1/9), no caderno de Economia, numa página par (34),
ocupando um quarto de página. Poucos repararam.
Significa que o poderoso Grupo Globo admite a
ingerência de uma entidade reguladora da concorrência sem abrir as baterias
contra uma suposta “tentativa de cerceamento de liberdade de expressão”. É um
avanço extraordinário. Abre caminho para que o mesmo CADE examine outras
disfunções concorrenciais no campo da mídia tais como a propriedade cruzada de
veículos eletrônicos e impressos numa mesma região.
Motivações distintas
A Folha de S.Paulo também assumiu
seus pecados políticos ao reconhecer que manteve contatos com a repressão e
permitiu que a sua redação fosse infiltrada por agentes dos chamados “órgãos de
segurança”, na esteira a decretação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de
1968. Mas o fez de forma enviesada, sem a desinibição e a candidez do
concorrente carioca. Ainda pode avançar. Sobretudo porque em matéria de
diversidade política está a frente dos demais veículos de comunicação.
Uma advertência se faz imperiosa: penitenciar-se do
passado implica obrigatoriamente mudanças no presente. A contrição deve
resultar, senão em reparação, pelo menos em superação. O cultivo da culpa e do
remorso só faz sentido quando acompanhado por correções. A histeria ideológica
que levou a imprensa a engajar-se numa quartelada desastrosa há quase meio
século não pode ser repetida agora, ainda que motivações e pretextos pareçam
distintos.
Bater no peito é prova de consciência; estender a mão,
sinal de maturidade.
***
Apoio editorial ao golpe de 64
foi um erro
Desde as manifestações de junho, um coro voltou às
ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma
verdade, e, também de fato, de uma verdade dura.
Já há muitos anos, em discussões internas, as
Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.
Há alguns meses, quando o Memória estava sendo
estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar
pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi
escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto.
Não lamentamos que essa publicação não tenha vindo
antes da onda de manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos
deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era
correta e que o reconhecimento do erro, necessário.
Governos e instituições têm, de alguma forma, que
responder ao clamor das ruas.
De nossa parte, é o que fazemos agora, reafirmando
nosso incondicional e perene apego aos valores democráticos, ao reproduzir
nesta página a íntegra do texto sobre o tema que está no Memória, a partir de
hoje no ar:
1964
“Diante de qualquer reportagem ou editorial que lhes
desagrade, é frequente que aqueles que se sintam contrariados lembrem que O
GLOBO apoiou editorialmente o golpe militar de 1964.
A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas
não há como refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a
intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como “O Estado de
S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “Jornal do Brasil” e o “Correio da Manhã”, para
citar apenas alguns. Fez o mesmo parcela importante da população, um apoio
expresso em manifestações e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras
capitais.
Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos
militares pelo temor de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João
Goulart, com amplo apoio de sindicatos – Jango era criticado por tentar
instalar uma “república sindical” – e de alguns segmentos das Forças Armadas.
Na noite de 31 de março de 1964, por sinal, O GLOBO
foi invadido por fuzileiros navais comandados pelo Almirante Cândido Aragão, do
“dispositivo militar” de Jango, como se dizia na época. O jornal não pôde
circular em 1º de abril. Sairia no dia seguinte, 2, quinta-feira, com o
editorial impedido de ser impresso pelo almirante, “A decisão da Pátria”. Na
primeira página, um novo editorial: “Ressurge a Democracia”.
A divisão ideológica do mundo na Guerra Fria, entre
Leste e Oeste, comunistas e capitalistas, se reproduzia, em maior ou menor
medida, em cada país. No Brasil, ela era aguçada e aprofundada pela
radicalização de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963,
por meio de plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para que
ele, vice, pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros. Obteve,
então, os poderes plenos do presidencialismo. Transferir parcela substancial do
poder do Executivo ao Congresso havia sido condição exigida pelos militares
para a posse de Jango, um dos herdeiros do trabalhismo varguista. Naquele
tempo, votava-se no vice-presidente separadamente. Daí o resultado de uma
combinação ideológica contraditória e fonte permanente de tensões: o presidente
da UDN e o vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu o rastilho da crise
institucional.
A situação política da época se radicalizou,
principalmente quando Jango e os militares mais próximos a ele ameaçavam
atropelar Congresso e Justiça para fazer reformas de “base” “na lei ou na
marra”. Os quartéis ficaram intoxicados com a luta política, à esquerda e à
direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado por marinheiros –
Cabo Ancelmo à frente –, a hierarquia militar começou a ser quebrada e o
oficialato reagiu.
Naquele contexto, o golpe, chamado de “Revolução”,
termo adotado pelo GLOBO durante muito tempo, era visto pelo jornal como a
única alternativa para manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam
uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para
a sua intervenção, ultrapassado o perigo de um golpe à esquerda, o poder
voltaria aos civis. Tanto que, como prometido, foram mantidas, num primeiro
momento, as eleições presidenciais de 1966.
O desenrolar da “revolução” é conhecido. Não houve as
eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a
posse de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto
indireto, falecido antes de receber a faixa.
No ano em que o movimento dos militares completou duas
décadas, em 1984, Roberto Marinho publicou editorial assinado na primeira
página. Trata-se de um documento revelador. Nele, ressaltava a atitude de
Geisel, em 13 de outubro de 1978, que extinguiu todos os atos institucionais, o
principal deles o AI5, restabeleceu o habeas corpus e a independência da
magistratura e revogou o Decreto-Lei 477, base das intervenções do regime no
meio universitário.
Destacava também os avanços econômicos obtidos
naqueles vinte anos, mas, ao justificar sua adesão aos militares em 1964,
deixava clara a sua crença de que a intervenção fora imprescindível para a
manutenção da democracia e, depois, para conter a irrupção da guerrilha urbana.
E, ainda, revelava que a relação de apoio editorial ao regime, embora
duradoura, não fora todo o tempo tranquila. Nas palavras dele: “Temos
permanecido fiéis aos seus objetivos [da revolução], embora conflitando em
várias oportunidades com aqueles que pretenderam assumir a autoria do processo
revolucionário, esquecendo-se de que os acontecimentos se iniciaram, como
reconheceu o marechal Costa e Silva, ‘por exigência inelutável do povo
brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um ‘pronunciamento’ ou
‘golpe’, com o qual não estaríamos solidários.”
Não eram palavras vazias. Em todas as encruzilhadas
institucionais por que passou o país no período em que esteve à frente do
jornal, Roberto Marinho sempre esteve ao lado da legalidade. Cobrou de Getúlio
uma constituinte que institucionalizasse a Revolução de 30, foi contra o Estado
Novo, apoiou com vigor a Constituição de 1946 e defendeu a posse de Juscelino
Kubistchek em 1955, quando esta fora questionada por setores civis e militares.
Durante a ditadura de 1964, sempre se posicionou com
firmeza contra a perseguição a jornalistas de esquerda: como é notório, fez
questão de abrigar muitos deles na redação do GLOBO. São muitos e conhecidos os
depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de acompanhar funcionários
de O GLOBO chamados a depor: acompanhava-os pessoalmente para evitar que
desaparecessem. Instado algumas vezes a dar a lista dos “comunistas” que
trabalhavam no jornal, sempre se negou, de maneira desafiadora.
Ficou famosa a sua frase ao general Juracy Magalhães,
ministro da Justiça do presidente Castello Branco: “Cuide de seus comunistas,
que eu cuido dos meus”. Nos vinte anos durante os quais a ditadura perdurou, O
GLOBO, nos períodos agudos de crise, mesmo sem retirar o apoio aos militares,
sempre cobrou deles o restabelecimento, no menor prazo possível, da normalidade
democrática.
Contextos históricos são necessários na análise do
posicionamento de pessoas e instituições, mais ainda em rupturas
institucionais. A História não é apenas uma descrição de fatos, que se sucedem
uns aos outros. Ela é o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para
seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se
enriquece ao reconhecê-los.
Os homens e as instituições que viveram 1964 são, há
muito, História, e devem ser entendidos nessa perspectiva. O GLOBO não tem
dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram
aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país.
À luz da História, contudo, não há por
que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como
equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse
desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela
só pode ser salva por si mesma
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