MD-42 - A mídia e a
agenda da democratização do poder político
"As
experiências argentina e brasileira mostram que a mídia entrou,
definitivamente, na agenda de debates sobre a democratização de nossas
sociedades. ‘Independente da vontade da grande mídia, ela está em discussão e
isso não ocorre à toa’, observou Venício Lima, jornalista, sociólogo e fundador
e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da
Universidade de Brasília (UnB), durante o debate promovido sexta-feira à noite
pela Carta Maior.
No
dia 16 de abril de 1971, Ivan Seixas foi preso pela Operação Bandeirantes, em
São Paulo, aos 16 anos de idade, junto com seu pai, o metalúrgico Joaquim
Seixas, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Os dois foram
torturados por agentes da Operação Bandeirantes (Oban) e Joaquim foi
assassinado no dia seguinte. Ivan hoje é jornalista e coordenador do primeiro
fórum de presos e perseguidos políticos, além de membro da Comissão de Familiares
de Mortos e Desaparecidos Políticos. Ele, Laurindo Leal Filho, Venício Lima,
Luis Nassif e Antonio Roberto Espinosa estiveram juntos na noite de
sexta-feira, em São Paulo, em um debate promovido pela Carta Maior e
transmitido ao vivo pela TV Carta Maior.
O
tema geral do debate foi a atuação da mídia brasileira na cobertura da vida
política, social e econômica do país. Mas o debate não se limitou ao caso
brasileiro. Professor da Universidade de Buenos Aires, Damian Loreti trouxe a
experiência Argentina sobre o tema, relatando uma realidade muito semelhante à
brasileira no que diz respeito ao estado das artes da mídia. No início do
encontro, as relações entre mídia e ditadura dominaram o debate. Relações estas
que ecoam até os dias de hoje.
Ivan
Seixas contou um pouco de sua história: ‘Eu era militante dessa organização,
era guerrilheiro. Não estamos falando aqui de talvez, vamos deixar claro. Nessa
condição de militante de uma organização clandestina de luta armada contra a
ditadura que eu fui preso com o meu pai, mecânico de 49 anos. Nossa casa, que
também era um aparelho da revolução, foi invadida e saqueada.. Eles invadiram e
roubaram absolutamente tudo. Vi capitão e sargento com sapato e roupas nossas,
com o relógio do meu pai. Prenderam também minha mãe e minhas duas irmãs. Elas
foram colocadas numa sala próxima e ouviram todo processo de tortura’.
Jornalistas e censores
O
relato de Seixas remete ao livro da historiadora Beatriz Kushnir, ‘Cães de
Guarda: Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1988’. Nesta obra,
Beatriz recupera a trajetória da Folha da Tarde. Segundo ela, o jornal foi o
reduto, entre 1967 e 1984, de um grupo de jornalistas colaboracionistas, os
‘cães de guarda’, que tocavam a redação como uma delegacia de polícia. Durante
uma década e meia o jornal ficou sob o comando da direita e muitos dos seus
jornalistas tinham cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo. ‘Sempre tinha um carro de distribuição da Folha da Tarde no local do
cerco, quando prendiam alguém. Um carro da Folha da Tarde nunca era
coincidência, pessoas foram até presas e transportadas nos carros da Folha da
Tarde’, relembrou Seixas.
Outra
prática, que foi exemplar na Folha da Tarde, era a publicação da versão
integralmente oficial do Estado para desaparecimentos e assassinatos, como no
caso de uma manchete de abril de 1971 que anunciava a morte do guerrilheiro
Roque, em confronto com a polícia de São Paulo. Roque era o codinome de Joaquim
Seixas. Ivan lembra que foi levado pelos policiais para fora da Oban e leu em
uma banca de jornal a notícia da morte do pai. Quando voltou, Joaquim ainda
estava vivo, mas foi assassinado horas depois. Os jornais do dia seguinte
reproduziram friamente a nota oficial dos órgãos de repressão que falava da
morte em um enfrentamento armado que não aconteceu.
A ‘ditabranda’ e o ‘sequestro de Delfim’
O
segundo relato que resgatou as relações entre a mídia e a ditadura foi de
Antônio Roberto Espinosa. No dia 5 de abril deste ano, o professor de Política
Internacional e doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
(USP), levou um susto ao abrir a edição dominical da Folha de S. Paulo, jornal
que não assina mais. Algumas semanas depois de cunhar o termo ‘ditabranda’ em
editorial para caracterizar a ditadura militar brasileira, o jornal estampava
na primeira página ‘Grupo de Dilma planejou sequestro de Delfim Neto’. Nas
páginas internas, o jornal se referiu à ministra como ‘ex-integrante da cúpula
da organização terrorista…’.
Uma
entrevista de Espinosa, ex-dirigente da VAR-Palmares, foi usada pela Folha para
acusar a ministra de ter participado de um plano para seqüestrar, no final da
década de 60, o então ministro Delfim Netto. ‘Todos os dias arranjam uma ação
para mim. Agora é o seqüestro do Delfim? Ele vai morrer de rir’, disse Dilma à
Folha. Espinosa resumiu a história como uma estratégia contra a virtual
candidata petista à presidência da República.
‘Eu
sou jornalista e a minha vida inteira é dedicada à luta pelas liberdades. A
jornalista essa que escreveu a matéria, eu sempre esqueço o nome dela, usou uma
técnica que eu sempre censurei. Fui editor de muitos jornais e revistas, tive o
meu jornal o Primeira Hora, e o apelido que sempre dei a esse tipo de técnica é
fonoportagem’. Os dois conversaram por três horas.
‘Em
páginas corridas de jornal, seis colunas, sem foto, essa conversa estaria em
cinco ou seis páginas. Dois meses depois da entrevista, eu pego o meu exemplar
da Folha e estava na capa que a Dilma queria seqüestrar o Delfim e que isso
teria sido dito por mim. Aliás, grafando meu nome de uma maneira incorreta do
mesmo jeito que era grafado nos cartazes dos procurados pela ditadura militar’.
No
mesmo dia, Espinosa enviou uma carta de retratação para a Folha, que não foi
publicada. Na segunda-feira, a carta circulava por e-mail e era publicada em
milhares de pontos da internet, menos na Folha de S. Paulo. ‘No final da tarde,
o editor do Painel do Leitor me procurou e disse que estavam dispostos a
publicar uma carta inédita de no máximo 1,5 mil toques. Eu quis que o pedido
fosse enviado por e-mail, tudo documentado, porque não confio mais neste
jornal’. A carta de Espinosa foi publicada, mas a história rendeu discussões em
blogues, universidades e na mídia sobre a prática jornalística da publicação de
Otávio Frias.
O debate sobre a mídia na Argentina
O
caso argentino e o debate sobre a Lei de Serviços de Comunicação Social
Assim
como no Brasil, as normas que regem o sistema de radiodifusão na Argentina são
filhas da ditadura militar. Um aceno de mudança foi dado ainda neste mês,
quando a Cristina Kirchner apresentou uma proposta à sociedade para elaborar um
projeto de lei destinado a substituir as leis que datam de 1981. A proposta
para uma nova Lei de Serviços de Comunicação Social foi apresentada no Teatro Argentino
de La Plata, cidade situada a 80 quilômetros da capital Buenos Aires. Dentre as
medidas, está a definição de uma cota de 33% de licenças de rádio e televisão
dedicadas exclusivamente a entidades sem fins lucrativos, como universidades,
cooperativas, igrejas e organizações não-governamentais.
A
intenção geral da proposta é democratizar o acesso aos meios de comunicação. ‘A
expressão não pode ser monopolizada por um setor ou empresa. Só podemos formar
cidadãos livres se eles têm a possibilidade de formar seu próprio pensamento’,
disse Cristina Fernandez de Kirchner ao abrir o debate. Além disso, argumentou
que a atual legislação de audiovisual ‘é inválida por sua origem’, já que foi
aprovada pelo governo militar, e que por isso o novo projeto é ‘uma velha
dívida da democracia’.
O
mediador do debate promovido pela Carta Maior, o sociólogo e jornalista
Laurindo Leal Filho, pediu a Damian Loreti para que falasse sobre o andamento
deste debate na Argentina. Segundo ele, trata-se de um processo com uma longa
gestação, de uma proposta de projeto de lei que vem sendo tema de debates
públicos em cada uma das universidades nacionais das províncias argentinas. ‘De
quem é a liberdade de expressão’? - perguntou antes de concluir que é
necessário uma ‘mudança de paradigma, com instâncias de pluralismo e de
diversidade’. Os sindicatos de trabalhadores de imprensa também têm chamado
especialistas das universidades para travar esta discussão’. Até aqui, os
grandes ausentes deste processo público são justamente os meios de comunicação
que rejeitam debater o tema com a sociedade.
‘A
mídia está em discussão e isso não ocorre à toa’
As
experiências argentina e brasileira mostram que a mídia entrou,
definitivamente, na agenda de debates sobre a democratização de nossas sociedades.
‘Independente da vontade da grande mídia, ela está em discussão e isso não
ocorre à toa’, observou Venício Lima, jornalista, sociólogo e fundador e
primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da
Universidade de Brasília (UnB). Os estudos de Lima sobre a concentração da
mídia e o coronelismo eletrônico são fundamentais para entender as deficiências
da democracia brasileira. Segundo ele, quando a mídia não consegue alcançar um
mínimo de diversificação e quando a distribuição das concessões é viciada pela
ilegalidade e pelos conchavos, as condições essenciais para a democracia e para
a justiça ficam comprometidas.
‘Estamos
vivendo no Brasil e na Argentina um momento especial em relação à mídia. Nos
últimos anos, a mídia entrou na agenda publica de discussão e esse encontro
aqui promovido pela Carta Maior é uma comprovação disso’, disse Lima. Enquanto
a Argentina se prepara para um importante debate que deve envolver toda a
sociedade, Carta Maior também discute o tema que envolve diretamente o Brasil,
justamente no ano em que será realizada a primeira Conferência Nacional de
Comunicação.
O ‘movimento tenentista’ da internet
Nos
últimos anos, esse cenário de concentração vem sendo contaminado por um vírus
que não pára de crescer: o vírus da blogosfera e de uma rede de espaços
alternativos na internet. ‘Hoje você tem uma estrutura articulada de blogues
que conectam este debate’, destacou Luis Nassif, responsável desde 2007 por uma
série de artigos sobre os bastidores da Veja, em que critica os últimos anos da
publicação. ‘A Veja sempre foi uma caricatura, mas hoje é uma caricatura
ostensiva’, resumiu.
Nassif
classificou esse processo como uma espécie de movimento tenentista na mídia,
numa alusão ao movimento político-militar e à série de rebeliões de jovens
oficiais do Exército brasileiro no início da década de 1920, descontentes com a
situação política do Brasil. Esses jovens oficiais propunham reformas na
estrutura de poder do país, o fim do voto do cabresto, a instituição do voto
secreto e a reforma na educação pública. Pois, no debate sobre a mídia,
trata-se justamente de discutir a atual estrutura de poder no país, onde os
meios de comunicação desempenham um papel fundamental.
Para
Nassif, o modelo midiático atual é inviável e estamos assistindo a um processo
de transformação que não tem retorno. Ainda não é possível prever, admitiu, o
que virá no lugar do modelo atual, mas as mudanças já estão em curso.. O
jornalista destacou o extraordinário dinamismo da rede de blogs e sites que
acompanham diariamente o trabalho da chamada grande mídia. Hoje, os
acontecimentos políticos e econômicos e os movimentos midiáticos em torno deles
são rapidamente repercutidos e as tentativas de manipulação são alvo de reações
quase que imediatas. Elas se tornaram inviáveis com o crescimento das redes de
produção e circulação de informações na internet..
E o próprio debate foi um exemplo disso.
Durante as mais de duas horas de transmissão pela TV Carta Maior, mais de 800
internautas encaminharam mensagens com comentários e perguntas aos debatedores.
O interesse que o tema desperta é um sinal que a sociedade está muito
interessada em discutir esse assunto e cultiva uma atenção especial acerca do
comportamento da mídia. No ano em que o Brasil se prepara para realizar sua
primeira Conferência Nacional de Comunicação e no momento em que a Argentina
promove um debate nacional sobre a necessidade de democratizar o acesso à
comunicação, entendida como um direito e não como uma mercadoria a mais, fica
evidente a crescente demanda pela ampliação e aprofundamento dessa
discussão.."
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Quarta-feira, 02 de Julho de 2014 | ISSN
1519-7670 - Ano 18 - nº 805
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