MD-41
- O golpe e as vítimas esquecidas pela mídia
Por Fabio de Oliveira Ribeiro em
19/06/2007 na edição 438
A
reabilitação do Lamarca despertou pouco interessa à imprensa. Na TV,
especialmente na Rede Globo, o caso foi narrado como algo absolutamente
trivial. Tudo se passou como se Lamarca fosse mais uma vítima de bala perdida.
Uma vítima cuja história não merecesse ser contada. Mesmo quando a imprensa
conta a história dele, omite a história das outras vítimas e a dos
torturadores.
Não
existe dúvida de que a anistia beneficiou – inclusive e principalmente, os
torturadores. Formalmente eles não podem ser julgados pelos crimes de tortura e
pelas execuções que praticaram. Qualquer norma legal que for aprovada para
possibilitar sua punição seria inconstitucional, pois a CF88 proíbe
expressamente a retroatividade da Lei Penal mais severa.
A
anistia, entretanto, não pode ser um argumento para permitir a supressão da
História do país. Os documentos que estão sob custódia de militares e que
relatam as execuções e torturas já deveriam ter sido digitalizados e publicados
na internet (inclusive, os referentes aos crimes dos militantes de esquerda),
de maneira a que os cidadãos pudessem pesquisar e conhecer a verdadeira a
história do Brasil.
Ideologia
intolerante
As
pessoas que defendem a tese de que a esquerda não aceita a divulgação de todos
os documentos, pois pretende preservar a imagem de terroristas conhecidos e que
ocupam ou ocuparam postos no governo Lula, desvia a população da verdade. A
falácia de seu argumento é evidente. Todos os documentos são conservados por
militares e, portanto, eles não precisam do aval da esquerda para divulgar o
conteúdo de peças que já fizeram parte de inquéritos e processos movidos contra
ex-guerrilheiros.
Na
verdade, os militares que conservam os arquivos da ditadura não estão obrigados
a entregar os documentos para uma prévia seleção que beneficiaria os supostos
terroristas. Podem divulgar tudo a qualquer momento. Não fazem isto porque
pretendem preservar a imagem de oficiais da ativa e os militares reformados.
Os defensores do golpe de 1964 dizem
sempre que os militares eram nacionalistas, que lutavam contra comunistas.
Dizem, também, que a ideologia marxista-leninista é nociva aos interesses
nacionais. Entretanto, sob o ponto de vista estritamente filosófico, o
nacionalismo de direita também é uma ideologia. Uma ideologia intolerante
porque procura a destruição de outras ideologias. Todos os nacionalismos
modernos (inclusive o nacionalismo brasileiro, forjado na Escola Superior de
Guerra) são construções intelectuais desprovidas de base científica e histórica
(ver aqui).
Direito
de matar e torturar
É
evidente, portanto, que os defensores do nacionalismo de direita imposto ao
Brasil a partir de 1964 partem do pressuposto de que sua ideologia devia
prevalecer. Sob seus argumentos podemos identificar um componente básico da
intolerância política de direita: nossa ideologia é melhor porque é superior
moral, ética ou religiosamente. Assim, as semelhanças entre o nacionalismo de
direita brasileiro e o nazismo alemão são evidentes. Contudo, como somos todos
mestiços, o conceito de "pureza racial" não podia ser adotado no
Brasil. Portanto, os ideólogos do nacionalismo de direita descartaram o viés
biológico de sua versão do nazismo, não sem preservar sua brutalidade e
intolerância em relação às ideologias de esquerda.
A
superioridade moral do nacionalismo de direita brasileiro – que dominou as
décadas de 1960/1970 – é uma mentira. Os militares e seus amigos enriqueceram
às custas do erário público, usaram da violência para calar o movimento
operário, rebaixando a participação dos salários no PIB, se mantiveram no poder
contra a vontade de uma parcela da população e mediante a censura da imprensa.
A superioridade religiosa dos integrantes e defensores do regime totalitário
também é uma falácia. Eles se diziam cristãos e, no entanto, perseguiam, espancavam
e matavam seus concidadãos. Não há uma só palavra no Novo Testamento
justificando o uso da violência.
A
força bruta foi o único argumento da ditadura (na verdade, ainda é o principal
argumento de seus defensores). Segundo os militares e seus lustra-botas civis,
os golpistas tinham o direito de matar e torturar porque estavam em guerra com
os comunistas. Não cometeram crimes porque a venceram. Os militantes de
esquerda deviam ser torturados e mortos porque estavam desarmados ou mal
treinados e foram vencidos.
Os
arquivos da ditadura
Contudo,
se os militantes de esquerda eram criminosos e deviam ser tratados como
criminosos, os militares tinham a obrigação de resguardar sua integridade
física e moral na forma da legislação da época, o que não ocorreu. O Brasil era
signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, diplomas que proíbem expressamente a tortura e a
execução de prisioneiros.
Ainda
que encaremos a atuação da repressão sob a ótica estritamente militar, a
justificativa da tortura e da execução de prisioneiros é inexistente. O uso da
tortura ou da execução sumária são proibidos em tempos de guerra. A atuação das
forças armadas brasileiras no período 1964/1988 foi ilegal porque violou a
Convenção de Genebra (diploma aplicável em tempo de guerra externa ou civil).
Antes que me acusem de petista, digo
aqui que não votei no Lula. Muito pelo contrário, fiz campanha do voto nulo,
dentre outros motivos porque Lula se comprometeu com o sigilo dos arquivos da
ditadura. Também não sou comunista. Nasci em 1964 e, atualmente, até que estou
satisfeito com o capitalismo (tanto que quero até minha história, algo que os
militares se recusam a me entregar, certamente porque são anarquistas).
Os
fundamentos do poder
As
viúvas da ditadura não gostam deste termo. Insistem que de 1964/1988 não houve
uma "ditadura", mas um "regime militar" ou um "regime
autoritário". Sustentam, às vezes, que as crianças estão sofrendo lavagem
cerebral porque os professores comunistas lhes ensinam que houve uma
"ditadura". Entretanto, quem estudou em escolas públicas no início da
década de 1970 (este é meu caso) era obrigado a decorar as biografias do Costa
e Silva, do Médici e do Jarbas Passarinho como se eles fossem grandes
nacionalistas, e não golpistas truculentos. Minha geração sofreu a mais
descarada, desavergonhada e estúpida lavagem cerebral sob a supervisão de um
ministro da Educação militar.
Aqueles
que ainda vêm a público defender o golpe de Estado que ocorreu em 1964, continuam
sendo o que sempre foram, ou seja, militares brutais e dogmáticos. Mesmo após
vinte anos de democracia, ainda se julgam "donos da verdade", a ponto
de acreditarem que ficariam impunes. Mas ninguém pode rasgar uma Constituição,
cuspir na democracia, ignorar a vontade popular, torturar e matar seus
concidadãos e ainda assim reescrever a história do país.
O
autoritarismo desses pulhas não tem fim. Ficam frustrados porque não conseguem
mais impor sua maneira de pensar à força. Acusam os interlocutores que defendem
a legalidade e a democracia de intransigentes, como se o golpe de Estado que
realizaram e ainda defendem não fosse uma intransigência ainda maior. O poder
só tem três fundamentos: a) divino; b) força bruta; c) voto popular.
Liberdade
para odiar
O
poder divino é o fundamento das monarquias (vivemos numa República, portanto
não perderei tempo cuidando desse tema). A força bruta é o fundamento das
ditaduras. O voto é o fundamento das democracias.
Nas
democracias a oposição é admitida, pois a disputa pacífica e eleitoral é a
única maneira de chegar ao poder e se manter nele. Nas ditaduras, a oposição é
proibida, pois quem está no poder o conseguiu e o mantém pela força das armas.
Enquanto na democracia há possibilidade de negociação entre situação e oposição,
na ditadura somente há repressão. A corrupção na democracia é um desvio que
pode ser investigado e punido. Na ditadura, a corrupção é a maneira pela qual o
dono das armas assegura o apoio de uma parte da população. Como dependem da
corrupção, os ditadores usam a força para calar a imprensa, algo que não pode
ocorrer na democracia.
Tudo
bem pesado, os que ainda defendem o golpe de 1964 deveriam agradecer o fato de
viverem numa democracia. Afinal, somente uma democracia proporciona ao cidadão
liberdade até para odiar, para fomentar a discórdia civil, pregar idéias
racistas e conspirar para a destruição do regime político. Se fizessem campanha
aberta de um golpe de Estado numa ditadura, os golpistas de 1964 seriam
chamados de dissidentes, terroristas, guerrilheiros e receberiam o tratamento
exemplar que certamente dariam aos defensores da democracia (se pudessem, é
claro).
Violaram
a hierarquia militar
Há uma perfeita simetria entre os
argumentos dos defensores do golpe de
1964 e os que foram usados à época. Mas eles nunca admitem que em 1964 ocorreu
um golpe de Estado. Isto nos obriga a discutir e rediscutir várias vezes o
passado.
João
Goulart foi eleito vice-presidente pelo voto popular. Em razão da renúncia de
Jânio Quadros, deveria ser empossado no cargo de presidente. Na época, Goulart
estava na China e a resistência à sua posse como presidente foi muito grande. A
solução para o impasse foi a aprovação de uma mudança na forma de governo. Com
a adoção do parlamentarismo, Goulart se tornou apenas chefe de Estado e o chefe
do governo passou a ser o primeiro-ministro eleito pelo Congresso Nacional. Em
razão de ser desprovido de substância política e histórica, o parlamentarismo
rapidamente se tornou frágil e o presidencialismo foi restabelecido. Assim, o legítimo
vice-presidente eleito pelo povo foi empossado no cargo de presidente da
República.
da Constituição Federal de 1946 (que
estava em vigor quando ocorreu o golpe de 1964), prescrevia que o presidente da
República era o comandante-em-chefe das Forças Armadas. Inconformados com o
resultado das urnas, desrespeitando a vontade popular e violando a hierarquia militar, os militares depuseram
um legítimo presidente, empossado na forma da CF/1946. Portanto, em 1964
ocorreu um verdadeiro golpe de Estado. Mas a história não seria contada assim.
Risco de vida
A
ditadura vitoriosa tratou de se legitimar dizendo que havia realizado a vontade
popular. Tratou de divulgar a versão de que Goulart não tinha legitimidade
política para governar e, portanto, sua deposição não teria sido um golpe de
Estado (foi esta história que aprendi na infância, quando era submetido à
lavagem cerebral organizada pelos militares). Com o fim da ditadura, essa
versão foi desmentida e os fatos contados tal como ocorreram. Mas os golpistas
e seus simpatizantes pretendem legitimar a revisão histórica (para,
eventualmente, possibilitar de um novo golpe).
Os
defensores da ditadura racionalizam sobre fatos incontroversos e historicamente
irrefutáveis. Sua racionalização é perfeitamente compreensível. Afinal, como em
1964 houve um golpe de Estado, se os militares responsáveis fossem julgados com
base na legislação penal militar, não haveria a menor possibilidade de serem
inocentados. Eles violaram a hierarquia e seriam considerados traidores (em
tempo de guerra poderiam até ser fuzilados).
Em razão do conteúdo do art. 87, da
CF/46 e da legislação internacional vigente à época (inclusive a Convenção de
Genebra), Carlos Lamarca só pode ser considerado um herói. Ao contrário de seus colegas, Lamarca
não desonrou sua farda, nem manchou o galardão do Exército. Ele não aderiu ao
golpe e, portanto, não violou a hierarquia militar. Ao contrário dos outros
oficiais, Lamarca correu risco de vida para preservar a hierarquia e lutou
contra os golpistas.
Vítimas
e descendentes
Quem ainda diz que, a partir de 1964,
houve um regime militar, pretende glorificar o passado dos torturadores e impor
a sua versão
da história do período. A versão mais adequada, que foi produzida por dezenas
de historiadores (alguns dos quais ex-torturados), diz exatamente o contrário –
ou seja, que de 1964 a 1988 vivemos sob uma brutal, cruel e desumana ditadura
que não respeitava nem as convenções internacionais, nem a legislação que
estava em vigor.
Vivemos
atualmente numa democracia. Portanto, até os amigos dos torturadores têm o
direito de tentar glorificar o passado deles. Mas isto não nos impede de querer
conhecer melhor o nosso. Esta controvérsia poderia ser resolvida com a abertura
dos arquivos da ditadura, mas é claro que os defensores dos torturadores
preferem a preservação do sigilo.
Muito
tem se dito e se escrito sobre a concessão de indenização às vítimas da
ditadura. A única maneira de passar a limpo a história, de superar o trauma do
regime militar e resolver a querela das vítimas é o Estado brasileiro assumir
de vez sua responsabilidade para com as vítimas do regime.
Os
arquivos do regime militar estão de posse de órgãos públicos ou de agentes
públicos. Assim, é inegável que o Estado sempre teve e ainda tem todas as condições
de levantar exatamente quantos e quais foram as vítimas de abuso policial e
militar. Os dados levantados dos arquivos militares e policiais podem ser
perfeitamente cruzados com outros bancos de dados estatais, como, por exemplo,
as listas de eleitores, cadastro de contribuinte e registros de identidade, de
maneira que o Estado tem condições de localizar as vítimas e seus descendentes.
Um
outro plebiscito
A
questão não é saber se todas as vítimas têm direito ao mesmo tratamento que
Lamarca, se é possível localizá-las e a seus descendentes, mas por que o Estado
ainda não fez isto. E nem se diga que não há permissivo constitucional para que
isto ocorra.
O
Estado é responsável pelos atos praticados pelos seus servidores. Como há uma
lei determinando as indenizações, a responsabilidade pode ser reconhecida
mediante ato administrativo, desde que respeitados os princípios da
impessoalidade e moralidade aos quais a administração pública federal está
sujeita por força de dispositivo constitucional. Portanto, desde logo, a União
federal estaria obrigada a tratar todas as vítimas da mesma maneira que tratou
Carlos Lamarca. Se não fez isto, foi porque faltou caráter, coragem ou vontade
de superar o impasse criado por alguns setores da sociedade.
A
mídia ainda não percebeu que esta história de obrigar o cidadão a provar na
justiça que foi vítima é um absurdo. Os agentes do Estado brasileiro não
respeitaram a legislação e o devido processo legal quando perseguiram,
torturaram e mataram os opositores e destruíram suas famílias. Assim, este
mesmo Estado não pode agora submeter as vítimas ao devido processo que lhes
negou no passado.
Não
bastasse tudo isto, as brutalidades do regime militar eram ilegais mesmo para
os padrões jurídicos da época. Assim, é inegável que o Estado brasileiro é
culpado pelos abusos cometidos em seu nome, mesmo que os servidores que
cometeram tais abusos tenham sido anistiados. A anistia conferida aos
criminosos políticos não alcança o próprio Estado porque este, obviamente, é
distinto daqueles que o fazem funcionar.
Além
de localizar e indenizar as vítimas, o Estado brasileiro deveria pedir
desculpas formalmente pelos abusos que seus agentes cometerem no passado. Cada
uma das vítimas do regime (perseguidos e familiares) ajudou e ainda ajuda a
sustentar com seus impostos o Estado, o mesmo Estado que os maltratou e que
deve agora tratá-los com alguma decência. Nunca é tarde para resgatar a
dignidade.
Há
bem pouco tempo foi realizado um plebiscito para verificar se a produção de
armas deveria ou não ser proibida no país. Por que não se pergunta ao eleitor
se o Estado deve ou não localizar e indenizar todas as vítimas do regime
militar, independentemente de processo judicial? Esta é uma questão que os
jornalistas deveriam responder.
***
Advogado, Osasco, SP
Quarta-feira, 02 de Julho de 2014 | ISSN
1519-7670 - Ano 18 - nº 805
|
FIM DE SEMANA, 25 E 26/4
Agência
Carta Maior
28/04/2009 na edição 535
POLÍTICA
Clarissa Pont e Marico Aurélio Weissheimer
Clarissa Pont e Marico Aurélio Weissheimer
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