Sexta-feira, 27 de Junho de 2014 | ISSN
1519-7670 - Ano 18 - nº 804
|
1964 + 50
MD-16
- Boicote e censura à imprensa
Por Altamir Tojal em 15/04/2014 na
edição 794
Alguns
órgãos de imprensa começaram há pouco tempo a admitir que erraram ao apoiar o
Golpe de 1964 e colaborar com a Ditadura Civil-Militar no Brasil.
Por
conta desse passado, porta-vozes de uma corrente de opinião crítica à atuação
presente dos principais órgãos de imprensa do país passaram a reiterar a
proposta de “boicote” a diversos veículos.
A
tímida autocrítica feita pela Folha de S. Paulo em seu editorial do dia 30 de
março suscitou, por exemplo, o seguinte comentário no Facebook: “Acho que
deveríamos começar uma campanha nacional de boicote à Folha e a todos os órgãos
da grande imprensa (Zero Hora/RBS, Globo, Editora Abril/Veja) que participaram
do golpe e/ou que o apoiaram depois e que ainda hoje têm o descaramento de
justificá-lo, ainda que com ressalvas”.
Os
veículos citados estão entre os que hoje publicam notícias sobre corrupção nos
governos e estatais e sobre deficiências nos serviços públicos, má gestão da
economia, entre outros temas que expõem erros dos que estão no poder.
Esses
veículos são líderes em seus mercados e são criticados não é de hoje por
concentrar poder demais através do controle de diferentes plataformas de mídia.
Há também acusações de oligopólio e excessiva influência política. Como no Governo
Lula, também no de FHC ocorreram discussões sobre o tema e foram redigidos
projetos de regulação da mídia. Um complicador nesse processo é a influência
efetiva que a própria mídia exerce na discussão.
Outro
complicador é a atuação dos inconformados com o noticiário presente. Esses não
estão nem aí para as distorções da propriedade cruzada de mídias eletrônicas,
nem para o vicioso sistema de concessões de radiodifusão e muito menos para os
abusos da TV paga, quando se trata de proprietários de órgãos de imprensa que
apoiam o governo pelo Brasil afora. E ainda muito menos estão preocupados com
os abusos da propaganda pública e sua interferência nas eleições.
Esse
é o pessoal que propõe o “boicote” e atua na web e na mídia chapa-branca,
xingando os profissionais de imprensa de “vendidos à burguesia” e os veículos
críticos aos governos de “golpistas” e “fascistas”.
A
proposta de “boicote” é recorrente nos últimos anos e merece reflexão. Está em
linha com a campanha que preconiza o “controle social” da mídia por delegados
do poder e espalha na sociedade a suspeita, a antipatia e o ódio ao trabalho
dos jornalistas em geral e aos que não são chapa-branca em particular.
Conta a acertar
É
bom para a sociedade e o país que pessoas e instituições reconheçam o protagonismo,
a cumplicidade e a omissão na Ditadura. Esse é um processo que por diversas
razões vem ocorrendo tardiamente e a conta-gotas no Brasil.
Agora,
50 anos depois do Golpe, as Forças Armadas anunciaram que vão investigar
torturas e mortes em algumas unidades militares. Estive preso no quartel da
Polícia do Exército da rua Barão de Mesquita, no Rio, e em dois outros da Vila
Militar, entre 1970 e 1971. Sei o que aconteceu.
O
reconhecimento, mesmo tardio, de que a tortura e o assassinato de opositores foi
uma política de estado praticada nos quartéis é uma dívida das Forças Armadas
para com os que sofreram na carne, para com os que morreram e suas famílias e
para com a sociedade. Somente depois disso estará aberto o caminho para o
restabelecimento pleno do respeito e admiração dos brasileiros às instituições
militares.
Todas
as pessoas e instituições que apoiaram a Ditadura têm essa conta a acertar com
a sociedade. Algumas têm a cara de pau de se apresentar como combatentes da
resistência democrática. Políticos que estão hoje no poder e empresários que
não deixaram de se beneficiar dos sucessivos governos foram protagonistas e
cúmplices da Ditadura.
A
rigor, a sociedade brasileira tem contas a acertar consigo mesma. O fato é que
grande parte apoiou o Golpe e depois se acomodou e aplaudiu a Ditadura mesmo
nos momentos de maior truculência. Hoje é muito barato falar em resistência
democrática. Recomendo ler as pesquisas e reflexões do historiador Daniel Aarão
Reis sobre o tema. Um bom começo é o livro ‘Ditadura e Democracia no Brasil’,
que acaba de ser lançado.
Muita
água ainda tem de rolar nessa cachoeira. Serão necessárias muitas “comissões da
verdade” para passar essa história toda a limpo. Não foi somente nas Forças
Armadas, na polícia e na imprensa que houve participação, adesão e omissão na
Ditadura. É preciso investigar mais a fundo o que ocorreu na administração
pública, nos partidos, no Legislativo, no Judiciário, no mundo empresarial, nas
instituições de ensino, nas entidades de classe e por aí vai. São muitos muros
de silêncio a serem derrubados.
Imprensa submissa
O
que ocorreu na imprensa brasileira durante a Ditadura?
Praticamente
toda a imprensa apoiou o Golpe Civil-Militar de 64. As exceções foram os
jornais da esquerda, que deixaram de circular no dia seguinte. Dos grandes
jornais, a Última Hora apoiou Jango, mas foi empastelada, incendiada e foi
sendo calada. O Correio da Manhã apoiou o Golpe, mas fez oposição à Ditadura
desde a primeira hora. Foi pressionado, ameaçado e submetido à asfixia comercial
e financeira até fechar. Os órgãos públicos deixaram de anunciar. As empresas
que insistiam em anunciar eram forçadas a parar por pressão do governo,
inclusive com ameaça de corte de crédito nos bancos públicos.
Depois,
todos os grandes veículos de comunicação sofreram censura e apoiaram a Ditadura
mais ou menos descaradamente, por mais ou menos tempo, alguns mais por
convicção outros mais por interesse ou por medo. Fui testemunha como cidadão,
como leitor, como ouvinte e telespectador. E também como jornalista. Trabalhei
no Jornal do Brasil entre 1971 e 1976. Lá presenciei inúmeras situações
vergonhosas de submissão à Ditadura, algumas constrangidas, outras não. Foi a
chamada “imprensa alternativa” que cumpriu o valente papel de resistência sob
censura e toda sorte de violência.
Hoje,
como as Forças Armadas e outras instituições, a imprensa paga o preço da adesão
à Ditadura e tem de aprofundar a autocrítica não somente com admissão de culpa
e desculpas, mas principalmente com o comprometimento efetivo com a democracia
e a liberdade. Isso passa, inclusive, por aceitar o debate em torno da mudança
nas regras do setor para desmontar a concentração do controle das diferentes
plataformas, um sistema de concessões republicano e uma regulação democrática,
o que não tem nada a ver com o projeto de “controle social” por delegados do
partido no poder.
Censura sem cerimônia
Mas
o que significa hoje “boicote” a um veículo de comunicação?
Imagino
que o ideólogo e o promotor do “boicote” não pretendem convencer quem deseja se
informar de deixar de ver, ouvir e ler o veículo que bem entende, o jornalista
de sua preferência, a matéria ou artigo do seu interesse. Fora isso, o que
seria o “boicote”? Seria, talvez, impedir um jornal ou uma revista de circular,
tirar uma emissora, um portal ou um blog do ar? Ou, quem sabe?, vetar um ou
outro jornalista ou blogueiro? Ou prendê-lo? Seria cortar anúncios do governo?
Perseguir os outros anunciantes? Ou queimar o que acham que não deve ser lido,
como fizeram os animados manifestantes no dia 25 de fevereiro passado na
Cinelândia, na tradição de nazistas e inquisidores.
“Boicote”
aqui é mais uma daquelas palavrinhas usadas sem cerimônia para esconder
propostas inaceitáveis. Em bom português, é pura e simplesmente uma forma
covarde de propor a censura.
Querem
erguer novos muros de silêncio no Brasil antes mesmo de demolir os que a
Ditadura impôs e estão de pé até hoje.
***
Altamir Tojal é jornalista
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