Terça-feira, 23 de Julho de 2013 | ISSN 1519-7670 - Ano 17 - nº 756
‘ÚLTIMA HORA’
MD-24 - Imprensa
e política num jornal polêmico
Por Matías M. Molina em 23/07/2013 na
edição 756
Reproduzido do Valor Econômico, 16/7/13; título
original “Imprensa e política num jornal nascido para provocar polêmica”,
intertítulos do OI
A Última Hora não chegou a ser
o jornal brasileiro de maior circulação nem o de maior prestígio. Mas é,
certamente, o que mais atenção vem recebendo no mundo editorial. Em torno de
uma dúzia de livros já foi publicada sobre ele e nada indica que a curiosidade
que suscita tenha diminuído. Esse número é muito superior ao de obras dedicadas
a diários extremamente influentes em sua época, como o Jornal do Commercio
e a Gazeta de Notícias, ou, mais recentemente, Correio da Manhã e
Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, ou A Gazeta, O Estado de
S.Paulo, Folha de S.Paulo.
O livro mais recente é O caso
Última Hora, de Aloysio Castelo de Carvalho. Apesar do título, seu foco não
é precisamente a Última Hora, mas a discussão das diferentes concepções
de opinião pública e de liberdade de imprensa de alguns jornais do Rio, de 1951
a 1954, e a percepção que tinham do sistema político – governo, partidos
políticos e sindicatos. A estrutura do livro pressupõe que o leitor tenha
conhecimento prévio sobre a fundação e evolução da Última Hora e sobre
seu fundador, Samuel Wainer.
A obra se concentra na campanha
contra Wainer, quando foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Última
Hora, em 1953, para examinar o financiamento que recebeu do Banco do
Brasil. Foram examinados editoriais, artigos assinados, colunas e reportagens.
A imprensa passou a questionar-se sobre si mesma, seu papel e suas relações com
os poderes públicos e a sociedade.
Revolução social
O autor escolheu os pontos de vista
de três diários do Rio que combatiam Wainer e seu jornal: a Tribuna da
Imprensa, de Carlos Lacerda, O Globo, de Roberto Marinho, e O
Jornal, o órgão líder dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Como
contraponto a eles, os da Última Hora. Não são explicados os motivos que
o levaram a selecionar esses jornais. Certamente, foram importantes na campanha
orquestrada por Lacerda contra a Última Hora. Mas o leitor pode
estranhar a ausência do Correio da Manhã e do Diário de Notícias,
na época talvez os jornais mais influentes do Rio, e do Diário Carioca.
O livro, que tem como origem uma tese
de doutorado, não é leitura fácil. Está permeado de conceitos abstratos, aos
quais o autor acrescenta digressões e citações de filósofos, que vão de Hobbes,
Locke e Hume a Maquiavel, passando por Rousseau, Montesquieu, Ortega y Gasset,
Adam Smith, Habermas, Tocqueville, Stuart Mill, Bobbio, Isaiah Berlin. Aparecem
também autores menos conhecidos, como Koselleck. Dada a preocupação do autor
com a precisão da linguagem, e com a divulgação de expressões como polissemia –
“O ter uma palavra muitas significações”, segundo o Aurélio –, soa estranho o
uso, como se fossem sinônimos, dos conceitos “liberal” e “conservador”, quando
escreve a respeito dos jornais.
Embora com frequência a opinião da Tribuna
da Imprensa, de O Globo e de O Jornal seja apresentada como
se formassem um bloco homogêneo, o autor também mostra que discordavam em
algumas questões essenciais. Os três queriam acabar com o concorrente Última
Hora, mas, enquanto a Tribuna da Imprensa negava legitimidade ao
governo de Getúlio Vargas, ele era defendido pelos jornais de Marinho e
Chateaubriand. O Globo escreveu a respeito do presidente: “Suas
palavras, de respeito aos poderes constituídos da República, foram as de um
patriota. A demagogia, a dubiedade (...) estiveram agora completamente
ausentes.” Ante a ameaça de impeachment, disse: “Getúlio Vargas é o
presidente eleito do Brasil e, como tal, cabe-lhe exercer o mandato até o
término do prazo para o qual foi eleito.” O Jornal, por sua vez, afirmou
que Vargas, quando fez o contrário do que diziam aqueles que imaginavam que
provocaria uma revolução social depois da posse, começou a tranquilizar e
despertou evidente confiança.
Para atacar UH
Todos os jornais, inclusive a Última
Hora, eram marcadamente anticomunistas e favoreceram a manutenção do PCB na
ilegalidade; todos combatiam o peleguismo sindical. A Última Hora, que
defendia a intervenção do Poder Executivo na imprensa por meio de subsídios,
quando foi criada a CPI denunciou a interferência do Legislativo nos assuntos
privados do jornal. O livro também mostra que, em sua defesa de Getúlio Vargas
e em seu empenho em transformá-lo num mito, a Última Hora deixou de
lembrar seu passado de ditador e defendia que o Poder Legislativo respondesse
às demandas de um governo cujo presidente foi eleito acima dos grupos e dos
partidos.
A respeito da criação da Petrobras,
tanto O Globo como O Jornal se manifestaram contra o monopólio
estatal. Mas, diferentemente do que diz o autor, a Tribuna da Imprensa
não apenas não se opôs ao monopólio estatal como o defendeu desde o começo. No
mesmo mês, dezembro de 1951, em que o governo divulgou o projeto inicial, que
previa a participação do governo estrangeiro na Petrobras, o jornal escreveu
que isso significava entregar “aos ‘trustes’ o controle da indústria sem risco
nem despesa”. Foi o primeiro de vários artigos da Tribuna, alguns
escritos por Lacerda, a favor do monopólio. Há outros deslizes, de menor
importância, como a afirmação de que Jânio Quadros foi vencedor das eleições à
Prefeitura de São Paulo em 1954 – ele se elegeu prefeito em 1953 e governador
em 1954.
O livro mostra como O Globo,
para atacar a Última Hora, transcreveu um texto de El Universal,
do México, segundo o qual a luta pela liberdade de imprensa era a luta “contra
o governo e os grandes grupos econômicos”. Faltou dizer que, precisamente, El
Universal era sustentado pelos subsídios do governo.
“Conspiração da silêncio”
As armas mais fulminantes na campanha
contra a Última Hora não foram os editoriais dos jornais – que pouca
gente lê –, mas os meios audiovisuais: a TV Tupi, de Chateaubriand, e a Rádio
Globo, de Marinho, usados por Lacerda com habilidade e agressividade que
mobilizaram a opinião pública.
Coincidentemente, outro livro tem um
título quase idêntico, Caso Última Hora, de Maikio Guimarães, que se
concentra no mesmo período do jornal, os primeiros anos da década de 1950. Mas
seu foco, o personagem principal do livro, ao contrário do que diz o título,
não é precisamente a Última Hora, mas Carlos Lacerda. Ele diz ter
percebido a superficialidade e fragilidade das críticas que lhe eram feitas e
saiu em sua defesa. O autor faz a chocante afirmação de que nenhum crítico pode
dizer que Lacerda tenha mentido em algum episódio, que ele foi superficialmente
analisado e que suas ideias e opiniões pouco são levadas em consideração por
seus detratores. Escolheu, para estudar sua pessoa, o “caso Última Hora”,
basicamente o período em que o jornal e Samuel Wainer foram atacados pelo resto
da imprensa e em que foi formada a CPI a respeito do financiamento à Última
Hora. Assegura que os detalhes do “caso” nunca foram revelados em sua
plenitude e que o episódio “ficou perdido nos desvãos da história”, mas que
deve ser resgatado e discutido. É o que ele se propôs fazer.
As fontes são conhecidas, basicamente
artigos de Lacerda e Wainer – o livro informa brevemente sobre a vida dos dois
–, autos do inquérito da CPI, além de obras já publicadas.
O autor utiliza as fontes de maneira
acrítica. Por exemplo, afirma que Wainer foi cobrir em 2 de fevereiro de 1951 a
primeira reunião ministerial comandada por Getúlio Vargas e ficou surpreso ao
perceber o desinteresse dos demais veículos pelo novo governo, numa
“conspiração do silêncio”. Conversando com Vargas, teria saído daí a ideia de
lançar um jornal para defender o presidente. A informação foi extraída da
autobiografia de Wainer. O evento teria acontecido em Petrópolis.
“Sindicato da mentira”
Uma rápida pesquisa mostraria que
dificilmente poderia haver uma reunião ministerial em Petrópolis em 2 de
fevereiro. Vargas estava no Rio, onde foi homenageado pelas missões
diplomáticas estrangeiras e pronunciou um discurso; nesse dia, almoçou com
Adhemar de Barros. Também nesse dia tomaram posse do cargo os ministros da
Justiça, da Educação e da Viação e o presidente do Banco do Brasil, com a presença
do vice-presidente da República, Café Filho.
As conclusões do livro são que
Lacerda tinha razão quanto ao financiamento da Última Hora pelo Banco do
Brasil – fato sobre o qual nunca houve dúvidas – e sobre a nacionalidade de
Wainer, nascido na Bessarábia. Afirma o autor que seu livro lançou luz sobre um
episódio esquecido da nossa história – embora tenha sido divulgado
repetidamente. Ele quis também resgatar dos seus detratores as ideias e a
figura de Lacerda. É possível, diz, que, com o tempo, o papel de Lacerda seja
repensado, questionado, discutido e criticado. Segundo o autor, sua própria
observação, livre de preconceitos, enxergou uma figura complexa e dona de
grandes gestos.
Mas Lacerda já foi enxergado como uma
figura situada à extrema-direita do espectro político, um admirador de
ditadores como Salazar em Portugal, sempre disposto a inventar acusações contra
seus adversários, reais ou imaginários. Lacerda abriu uma campanha contra Otto
Maria Carpeaux, acusando-o de “fascista”. Atacou Nelson Rodrigues como
desagregador da família brasileira, pelo simples fato de escrever na Última
Hora. Fez uma campanha contra “os comunistas do Itamaraty” e conseguiu a
expulsão de João Cabral de Mello Neto e de Antônio Houaiss. Cláudio Abramo
disse que Lacerda foi o responsável pela decadência do jornalismo político
carioca, ao cunhar a expressão “sindicato da mentira” para referir-se aos
jornalistas Carlos Castello Branco, Villas-Bôas Corrêa e Pompeu de Sousa.
Relações com o poder
O autor afirma que Lacerda tem sido
tratado nas mais diversas publicações como o “grande vilão”, apesar de a
principal obra sobre ele, escrita por John W. F. Dulles, ser uma verdadeira
hagiografia. Lacerda, uma pessoa cuja extraordinária inteligência foi superada
por uma ambição ainda maior, merece uma obra menos engajada.
Certamente, os livros resenhados não
esgotam o enorme manancial que foi um diário inovador como a Última Hora,
mas cujas relações com o poder não são um bom exemplo para a imprensa. E há
também outros jornais ainda mais importantes e interessantes à espera de um
autor que escreva sobre eles.
***
Matías M.
Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo
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