Para
historiadora, a censura foi aceita pelos grandes jornais no pós-64, que
mantinham policiais nas redações para que tudo ficasse sob controle
Por
Anna Beatriz Anjos
Na semana em que o golpe
de 1964 completou seus 50 anos, a historiadora e diretora-geral do Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Beatriz Kushnir, alerta: não houve drásticas
mudanças quando o assunto é mídia tradicional.
“Como os jornalistas que
estavam nas redações nos anos 60 continuam trabalhando, há uma tendência de se
autoconstruir uma história para si diferente dos fatos que aconteceram. Ou
seja, os grandes jornais continuam fazendo a mesma coisa que faziam
durante a ditadura: contar uma verdade a seu favor que não estava em sincronia
com o que aconteceu naquele momento”, explica.
Kushnir é especialista na
questão. Em 2001, obteve o título de doutora em História pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) com a tese Cães de guarda: jornalistas e
censores, do AI-5 à Constituição de 1988.
No trabalho, ela destrincha a relação entre censores do regime militar e
jornalistas nas redações dos principais jornais do país, em especial, nos do
grupo Folha da Manhã. Em
2004, a tese foi lançada como livro (Editora Boitempo).
Para a pesquisadora, a
presença de policiais a serviço da ditadura no ambiente de trabalho dos
chamados “jornalões” configura mais do que autocensura. “Era uma colaboração.
Era noticiado o que acontecia dentro do aparelho de Estado, dentro do aparelho
de tortura. O jornal era feito, de alguma maneira, para que o público
identificasse as ações de repressão não como tais, mas como assassinatos em
trocas de tiros, por fuga, e não assassinatos cometidos no porão da ditadura”,
analisa.
Fórum
– Em sua tese de doutorado, você analisa a relação entre os jornais do grupoFolha
da Manhã e os
militares, desde a instituição do AI-5 até a elaboração da Constituição de
1988. Quais são os principais pontos e particularidades dessa “parceria”?
Beatriz
Kushnir - Os focos de análise se
confluem em dois cenários e no diálogo que eles estabeleceram. Busquei arrolar,
por um lado, os jornalistas de formação e atuação que trocaram as redações pela
burocracia e fizeram parte, como técnicos de Censura, do DCDP [Divisão
de Censura de Diversões Públicas] –
órgão vinculado ao Departamento de Polícia Federal e subordinado ao Ministério
da Justiça. Por outro, os policiais de carreira que atuaram como jornalistas,
colaborando com o sistema repressivo e censor do pós-1964.
Para encontrar exemplos
dessa trajetória, redesenhou-se o percurso do jornal Folha da Tarde,
do Grupo Folha da Manhã, de 1967 a 1984. Analiso a trajetória do jornal Folha
da Tarde nos seus dois períodos: do retorno da circulação, em 1967,
até o AI-5, e quando se torna um instrumento de apoio e propaganda do Estado
autoritário. A reflexão, que intitulei “O jornal de maior tiragem: a trajetória
da Folha da Tarde. Dos jornalistas aos policiais”, foi dividida em
duas partes para contemplar esses diferentes instantes. Na seção sobre os
jornalistas, investigo a redação que lá se encontrava em 1967, vinculada à
cobertura dos movimentos políticos da época, da qual faziam parte militantes de
esquerda – de simpatizantes a engajados. No item sobre os policiais, o foco é a
mudança de contorno e de conteúdo dos que lá passaram a trabalhar.
Fórum
– Qual era a relação entre jornalistas e censores? As duas funções se
misturavam?
Kushnir
- É necessário mencionar que cheguei à
história da Folha da Tarde por
um acaso. Na realidade, buscava uma entrevista com o delegado Romeu Tuma – que,
ao ser convidado pelo presidente José Sarney [1985-90] para
assumir a direção do DPF, rompeu a tradição de militares ocuparem o cargo
máximo dessa instituição. Para tentar chegar ao delegado Tuma, contatei o seu
assessor de imprensa, em São Paulo, mas não conseguia agendar um encontro. Ao
entrevistar o jornalista Boris Casoy para compreender os reflexos da censura na
redação da Folha de S.Paulo,
mencionei a dificuldade de localizar o então senador da República Romeu Tuma.
Casoy me explicou o significado da frase “o jornal de maior tiragem”. A
expressão se deve ao fato de que que muitos dos jornalistas que ali
trabalharam eram igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo. A partir deste perfil de
funcionários, a Folha da Tarde carrega a acusação de
“legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido como o Diário
Oficial da Oban.
O espanto da revelação
guiou a investigação. Se existiram censores ex-jornalistas, também houve
“tiras” escrevendo em jornal. Esse é um estudo, portanto, que toca na questão
da ética, mas centra-se na prática de um ofício, nas regras a serem seguidas e,
sobretudo, nos seus momentos de rompimento da prática e da conduta.
Fórum – Além da ‘Folha’, quais outros veículos jornalísticos
prestaram apoio direto à ditadura? Este apoio se dava mais ou menos da mesma
forma?
As tonalidades da
colaboração são as mais diversas. No Jornal do Brasil, por
exemplo, o diretor José Sette Câmara enviou, em 29 de dezembro de 1969, para o
editor-chefe Alberto Dines, uma circular de 5 páginas denominada “Instruções
para o controle de qualidade e problemas políticos”, criada com o objetivo de
“instituir na equipe um (…) Controle de Qualidade (…) sob o ponto de vista
político”. Escrita dias antes do Decreto-Lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970,
que legalizou a censura prévia, e um ano após o AI-5, dizia, entre outras
coisas, que “O JB teve uma parte importante na Revolução [sic] de
1964 e continua fiel ao ideário que então pregou. Se alguém mudou foram os
líderes da Revolução. [Nesse sentido,
o JB deverá] sempre optar pela
suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal.
Para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso,
antes de mais nada, sobreviver”.
Em meados da década de
1970, foi a vez da Rede Globo, que era e é uma concessão pública, formalmente
instituir o “Padrão Globo de Qualidade”, ao contratar José Leite Ottati,
ex-funcionário do Departamento de Polícia Federal, para realizar a censura
interna e evitar prejuízos por conta da proibição de telenovelas. Segundo
Walter Clark, a primeira interdição da censura na Globo ocorreu em 1976, na
novela Despedida de casado. Para blindar a emissora, o “Padrão
Globo de Qualidade” receberia o auxílio de pesquisas de opinião.
Organizada a autocensura,
esse “Padrão Globo de Qualidade” contou com outros ingredientes para o
seu sucesso. Em sintonia com a imagem, divulgada pelo governo autoritário, de
um “Brasil Grande”, formulou-se também uma “assessoria militar” ou uma
“assessoria especial” composta por Edgardo Manoel Ericsen e pelo coronel Paiva
Chaves. Segundo Clark, “ambos foram contratados com a função de fazer a ponte
entre a emissora e o regime. Tinham boas relações e podiam quebrar os galhos,
quando surgissem problemas na área de segurança”.
Esquema semelhante a este
foi adotado pela Editora Abril, exposto em uma correspondência de Waldemar de
Souza – funcionário da Abril e conhecido como “professor” –, a Edgardo de Silvio
Faria, advogado do grupo, na qual comunicava o contato tanto com o chefe do
Serviço de Censura em São Paulo – o censor de carreira e jornalista José Vieira
Madeira –, como com o diretor do DCDP, Rogério Nunes, para facilitar a
aprovação das revistas e a chegada às bancas sem cortes.
Os vínculos de Waldemar de
Souza com membros do governo militar são anteriores a esse período. Em novembro
de 1971, o relações-públicas do DPF, João Madeira – irmão de José Vieira
Madeira – enviou uma carta ao diretor-geral da Editora Abril, na qual
ratificava o convite do general Nilo Caneppa, na época diretor do DPF, a
Souza para que fosse a Brasília ministrar um curso especial aos censores.
Em maio de 1972, o próprio general Caneppa enviou a Vitor Civita, diretor-geral
da Abril, uma correspondência de agradecimento pelas palestras sobre censura de
filmes que Souza havia realizado na Academia Nacional de Polícia. Para
continuar colaborando, no ano seguinte, Souza formulou uma brochura intitulada
“Segurança Nacional: o que os cineastas franceses esquerdistas já realizaram em
países da América do Sul e pretendem repetir aqui no Brasil”.
Fórum – Houve algum exemplo de resistência ao regime na grande
mídia?
Kushnir
– Alguns ícones de
resistência são a meteorologia para o 14 de dezembro de 1968, no Jornal
do Brasil [o texto publicado não correspondia ao dia ensolarado - "Tempo
negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido
por fortes ventos”]; as receitas de bolo do Jornal da Tarde; os
poemas de Camões no Estadão; os inúmeros jornalistas perseguidos,
demitidos, torturados e mortos etc., que definiriam a grande imprensa
brasileira como resistente ao golpe e, posteriormente, ao arbítrio. Mesmo com
todo este esforço, o processo ditatorial perdurou por mais de duas
décadas.
Fórum – Qual era o perfil do leitor dos jornais que faziam parte do
conglomerado Folha da Manhã?
Kushnir
– A Folha da
Tarde, entre 1967, quando renasce, até as
vésperas da morte do[Carlos] Marighella [em
1969], é feita para concorrer com o Jornal
da Tarde do Estadão. Feito para um
leitor que vai ler sobre as passeatas e os movimentos de esquerda.
Posteriormente, se volta para um outro tipo de público, que aprecia essa
leitura mais policialesca, como se fosse um jornal sangrento.
Fórum – O leitor se dava conta do processo de autocensura a que o
próprio jornal se submetia, por conta dos militares que faziam parte de seu
quadro de funcionários?
Kushnir
- Ali acontecia mais do que autocensura,
era uma colaboração. Era noticiado o que acontecia dentro do aparelho de
Estado, dentro do aparelho de tortura. O jornal era feito, de alguma maneira,
para que o público identificasse as ações de repressão não como tais, mas como
assassinatos por troca de tiro, por fuga, e não assassinatos cometidos no porão
da ditadura.
Fórum – O público acreditava nessa imagem construída, sem
contestá-la?
Kushnir
- Provavelmente, porque o que já havia ali
é uma legalização das mortes.
Fórum – À época, o que ocorreu com os jornalistas de esquerda?
Kushnir
- Os processos sofridos pelos jornalistas,
nessa época, se devem mais à sua militância política do que a ações enquanto
jornalistas. O que ocorre nos jornais brasileiros, desde sempre, são limpezas.
Claudio Abramo [que
trabalhou como jornalista na 'Folha de São Paulo' durante a ditadura] vai
dizer que os donos dos jornais cortavam jornalistas fortes. Ficou forte, eles
mandam embora. Existiam essas limpezas, desde 64, até meados dos anos 80, e são
delas que se forma o que chamamos de imprensa alternativa, ou imprensa nanica.
Esta, por sua vez, tem
várias nuances e tonalidades. Compreende desde publicações como O
Pasquim -
se contesta se ele era realmente uma imprensa alternativa - até
outras como O Bondinho, O
Lampião da Esquina, Movimento.
Esses jornalistas, banidos dos grandes meios, vão trabalhar ali.
A primeira geração toda da Folha
da Tarde cai, é presa, nas vésperas
do assassinato do Marighella. Essas pessoas ou ficam presas por alguns anos,
ou, quando saem, vão trabalhar em outro lugar, mas não mais na imprensa
tradicional. Exemplos são Jorge de Miranda Jordão, a quem o Frei Betto dedicou Batismo
de Sangue, o próprio Betto e uma série de outros
que entrevistei para o livro.
Fórum – Nessa semana em que o golpe completa seu cinquentenário,
como você analisa a situação da imprensa brasileira? Há resquícios do tempo de
ditadura?
Kushnir
– No Brasil, autocensura
na imprensa não é recente. Ela não se iniciou no pós-1964. Vem com a Real Mesa
Censória, na Colônia, e perdurou pelos nossos 513 anos. Mesmo nos raros
momentos democráticos da República brasileira, o departamento de censura
continua existindo, travestido na ideia da moral e dos bons costumes.
O que há de se sublinhar
nesses 50 anos do golpe é que, como os jornalistas que estavam nas redações nos
anos 60 continuam trabalhando, há uma tendência de se autoconstruir uma
história para si diferente dos fatos que aconteceram. Ou seja, os grandes
jornais continuam fazendo a mesma coisa que faziam durante a ditadura: contar
uma verdade a seu favor que não estava em sincronia com o que aconteceu naquele
momento. O que a historiografia tem feito, nos últimos 20 anos, e
principalmente a historiografia que tem trabalho com a imprensa, é desmontar
essa imagem, demonstrando que é uma imagem construída.
Como diz Jânio de Freitas,
em artigo de 1998, sobre os 30 anos do AI-5, o arquivos, hoje, possuem um
manancial maravilhoso. Se você voltar aos arquivos e pesquisar o que aquelas
pessoas publicaram àquela época, e o que elas dizem hoje sobre o que publicaram
àquela época, há uma sincronia.
Um exemplo disso é a Folha chamar
a ditadura de “ditabranda”, ou fazer um editorial, no último domingo [30
de março], que nada diz. Ou, ainda, no domingo
anterior, publicar um caderno sobre os 50 anos do golpe no qual o jornalista
que escreveu sobre a imprensa faz uma narrativa extremamente chapa-branca.
Fórum – Até agora, qual a melhor cobertura que viu sobre os 50 anos
do golpe?
Kushnir
- Para mim, é a do caderno de O
Dia. Estão cumprindo um papel muito bacana.
Estão puxando os fantasmas, dando nome aos bois. É uma imprensa popular, ou
seja, é um público popular que lê aquilo, e tem a chance de ler, de uma maneira
crítica, o que está acontecendo.
O público do Estadão,
da Folha,
do JB Online,
de O Globo é
muito específico, uma classe média. O público de O
Dia é outro. O
Dia se preocupar em fazer um caderno sobre
os 50 anos do golpe dessa qualidade demonstra um respeito interessantíssimo às
classes populares.
Fórum – Qual a sua opinião sobre a cobertura da mídia tradicional
sobre o golpe, denunciando todos os horrores da ditadura, sendo que eles mesmos
apoiaram tudo isso na época?
Kushnir - É muito curioso.
Essa semana, o UOL [de
propriedade do grupo Folha] lançou
um aplicativo com as capas dos 12 principais jornais no dia 31 de março. Era
algo meio assim: “olha, a gente fez, mas todo mundo também fez”. Vimos bonitas
reportagens, mas não houve uma reflexão crítica sobre o momento.
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